
“Pintar e Cantar dos Reis” de Alenquer é tradição com mais de 100 anos
Todos os anos a tradição é cumprida, na noite de cinco para seis de janeiro. Várias populações do concelho de Alenquer celebram “Pintar e Cantar dos Reis”. Sem ensaios ou combinações elaboradas, os grupos juntam-se espontaneamente e partem pelas ruas das respetivas povoações. Os membros que vão pintar seguem à frente e, em silêncio, munidos das tintas, pincéis e lanternas pintam as fachadas, os muros e as entradas das casas com os tradicionais desenhos dos Reis. Mais atrás seguem, em maior número, os cantores. É assim em Catém, Casal Monteiro, Ota, Abrigada, Olhalvo, Pocariça, Mata e Penafirme, Cabanas de Torres e Paúla.
Lúcio Carvalho é um dos reizeiros da Ota, e explica que nesta localidade parte da simbologia associada à tradição assenta nos votos de boas festas, (e mostra uma roseta com inscrições a dizer BF e o respetivo ano desde 2012 até 2015), mas também na importância do ritual do enamoramento e por consequência do casamento. Os habitantes locais, neste caso os que aderem à tradição, dirigem-se às casas das moças solteiras e desenham símbolos diferentes consoante sejam ou não comprometidas.
“Quando chegamos a uma casa, onde sabemos que mora uma menina dos seus 12 aos 14 anos, pintamos um coração a florir, mas quando já é mais velhinha e namora, passando à condição de moçoila casadoira, pintamos novamente o coração mas com a seta do cupido atravessada”, refere o reizeiro. Conta Lúcio Carvalho que “nada disto é feito com malícia nem com a intenção de interferir na vida privada” das raparigas da terra. “O símbolo apenas traduz a realidade do que se passa, não lhe atribuímos qualquer picantezinho”, enfatiza.
A memória desta tradição perde-se no tempo, e Lúcio Carvalho, 77 anos, ainda se lembra de ser cultivada no tempo do seu avô. (A tradição pode estar ligada, entre outros aspetos, à presença dos franciscanos no concelho “que trouxeram esta representação do Auto dos Magos” que incluíam desfiles e peditórios pelas ruas. De alguma forma também se pode associar os desenhos pintados pelos reizeiros nas casas “aos antigos rituais romanos de bênção do giz e das casas”). “Em condições precárias, esses homens de antigamente cumpriam o ritual depois de terem passado um dia inteiro a trabalhar no campo, e havia sempre alguém que lhes dava um cálice e um frito para comer durante a jornada dos Reis”, recorda-se, avançando que “hoje em dia as mesas são faustosas, e temos de tudo para comer e beber como se fosse um casamento”. Isto porque a tradição também passa por os reizeiros serem recebidos nas casas dos moradores que os contemplam com mesa farta. “O nosso espírito é de confraternização dentro da liturgia dos reis”. E esta liturgia passa também por serem ouvidos a cantar de luzes apagadas, como que intensificando o momento.
Durante alguns anos, o “Pintar e Cantar dos Reis” andou “um pouco titubeante”, mas mais recentemente renasceu, também com a adesão de vários jovens das localidades. A intenção do município de consagrar este ritual tão próprio a património nacional, e no futuro apresentar uma candidatura à Unesco, fez reavivar o coração dos reizeiros. O grupo da Ota está em “grande comunhão” com o projeto que quer fazer da tradição património nacional, (será submetido ainda este ano à Direção Geral do Património e Cultura), e quem sabe um dia mais tarde da Unesco.
Projeto para um Centro de Interpretação da tradição
Neste âmbito, o vice-presidente da Câmara de Alenquer, Rui Costa, reforça que uma das intenções da candidatura deste património na vertente nacional e na da Unesco pressupõe a salvaguarda do mesmo, incutindo “nas próprias comunidades esse sentimento de ser algo muito próprio e significativo”. “Desde 2013, o grupo de reizeiros do concelho tem-se renovado, com uma participação ainda mais interativa com as populações em algumas ações pontuais que se vão fazendo ao longo do ano”. Cerca de 300 pessoas dedicar-se-ão à tradição, “sendo que notámos um acréscimo de jovens a aderirem a esta noite”.
Recentemente, a autarquia deu a conhecer um estudo levado a cabo sobre esta tradição que resultou na publicação de um livro e a criação de 11 documentários vídeo (um geral, com cerca de 50 minutos e dez respeitantes às localidades onde a tradição se mantém, com cerca de seis minutos cada). Foi ainda considerado o “Pintar e Cantar dos Reis” como património de interesse municipal.
O autarca considera que uma vez submetida à Unesco, esta candidatura, a mesma abarca os diversos critérios exigidos como o facto de dizer respeito a um património que tem evoluído, “embora em cada comunidade o princípio seja sempre o mesmo”. “Existem algumas diferenças quanto às letras e aos símbolos pintados”, explica.
“Temos uma candidatura muito sólida com documentos escritos e ainda em suporte vídeo que pensamos possa vir a dar a quem a analisar a possibilidade de ter os elementos suficientes para a distinguir”, refere o vereador quanto às fases posteriores que o processo exigirá. Para Rui Costa não há pressa neste caminho, e salienta que a Câmara pretende criar um Centro de Interpretação do “Pintar e Cantar dos Reis”, em Alenquer. Sendo que para tal se candidatou ao programa “Tradições” da Fundação Edp. O projeto contempla ainda a criação de “um vasto conjunto de sinalética a espalhar por todo o concelho”.
No entanto, a intenção não será a de massificar o evento, pelo menos na noite em que o mesmo se celebra, “pois a tradição é de todo incompatível com grandes movimentos turísticos”.
Para José Barbieri da Cooperativa Memoria Media encarregue da elaboração do trabalho técnico que será mostrado à Unesco, e que já produziu diversos vídeos e um livro de dedicado a este património, sublinha que o “Pintar e Cantar dos Reis” e a possibilidade de ser bem-sucedido dependerá do envolvimento das populações e da importância que lhe atribuem”, embora “estejamos a falar de processos longos, pois neste momento está a demorar cerca de dois anos”. “Para nós trabalhar com estas comunidades foi muito gratificante”, sublinha.
Por este ser um património vivo entre as comunidades que o expressam todas as noites de cinco para seis de janeiro, tal pode vir a ser um dos predicados com mais impacto junto da Unesco, “porque não se classifica nada que já não seja praticado, ou que possa ser apenas fruto de uma recriação de algo que houve em tempos”, salienta o investigador. O facto de “as pessoas se reconhecerem nesta celebração, bem como a circunstância de não se realizar em mais sítio nenhum nem no país nem no estrangeiro é outro dos pontos favoráveis”. Chamou, ainda, a atenção da Memoria Media, “a recuperação de práticas muito antigas quanto aos sinais pintados nas paredes”.
A lista da Unesco que consagra aspetos da cultura dos povos como Património Cultural e Imaterial da Humanidade “respeita a ideia da luta contra a globalização no sentido da proteção dos traços identitários de determinada região ou comunidade”, e “isso é que garante a diversidade e a riqueza entre nós seres humanos”. O especialista diz que muitas vezes esta natureza da distinção tenta ser pervertida, um pouco por todo o mundo, com a apresentação de candidaturas que não cumprem minimamente os requisitos atendíveis pela Unesco “como já tem sido o caso de propostas para tachos de metal em que se percebe que o intuito é meramente comercial, e não tem nada a ver com tradições locais”, mas também são rejeitadas “tradições que entrem em choque com os direitos humanos”. Em Portugal “as recreações são as mais rejeitadas, ao estilo das famosas feiras medievais”.
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