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Opinião Joaquim Ramos: "Saúde Pública e Economia"*Mesmo que seja descoberto um tratamento eficaz para o Covid 19 ou uma vacina que nos proteja dele, o mundo que conhecemos até hoje vai ser substancialmente diferente daquele onde se vai desenrolar o nosso futuro.
19-05-2020 às 18:33
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1.Esqueçam o mundo que conhecemos até há dois ou três meses atrás. Mesmo que seja descoberto um tratamento eficaz para o Covid 19 ou uma vacina que nos proteja dele, o mundo que conhecemos até hoje vai ser substancialmente diferente daquele onde se vai desenrolar o nosso futuro. Tenho visto e ouvido muitas vezes comparar a crise pandémica que se vive atualmente com a crise financeira de 2008/2009, com a II Guerra Mundial ou com a grande depressão mundial de 1929. Em meu entender, não tem comparação possível. Aquelas decorreram de acidentes concretos, financeiros ou bélicos, perfeitamente identificados e que, na sua essência, não alteraram as relações entre as pessoas.
Na II Guerra Mundial, sabia-se quem era o inimigo, onde atacava, quem atingia, como responder-lhe. Nas crises financeiras também se conhece a origem e os economistas sabem as formas de as atacar – não que a receita seja património exclusivo dos economistas, mas é destes que se esperam as respostas para elas. Mas nunca passámos por uma pandemia global como esta em que se desconhecia completamente o vírus quando apareceu, onde ainda não há panaceia curativa ou preventiva, um inimigo invisível que não detetamos, não sabemos onde está, não temos certezas sobre as armas que usa para atacar e progredir nem as sequelas que deixará em cada um dos infetados, ainda que lhe tenham resistido. Até mesmo com outras epidemias que atacaram a Humanidade, como a gripe espanhola ou a peste negra na Idade Média, esta pandemia não pode ser comparada. Primeiro, porque aquelas eram muito mais letais do que a Covid 19; em segundo lugar, porque se focalizaram numa parte do Globo e esta é geral em todo o Mundo. Vivemos há mais de um mês, nós, portugueses, num isolamento forçado na tentativa de evitar o contacto. Fecharam-se escolas, empresas, restaurantes, toda e qualquer manifestação que cheire a um mínimo de concentração de massas está proibida e estamos, durante semanas a fio expostos a nós mesmos ou num convívio exclusivo apenas com quem connosco coabita. Temos medo do vizinho do lado, esvai-se o sangue das pernas quando alguém espirra a dez metros nas poucas e inevitáveis saídas que fazemos para ir trabalhar – os que ainda trabalham-, comprar comida ou desentorpecer as pernas. Esta não é apenas uma pandemia de saúde pública, é também de medo. Medo do vírus e medo da terrível crise económica com todo o desfile de misérias que provocará. E sabemos mais: vivemos no dilema de quanto mais tempo durar a situação em que estamos atualmente, adiando o ataque generalizado do vírus, maior será a recessão, os seus horrores de desemprego, miséria e fome e mais difícil a recuperação. Mas mesmo quando voltarmos à normalidade, os hábitos e o tipo de relações que fomos obrigados a praticar – um maior cuidado com as questões de higiene, o teletrabalho, a utilização do mundo virtual nas suas mais diversas vertentes de trabalho, recreio, cultura, tempos de lazer, vão perdurar na sociedade mesmo sem a ameaça do Coronavírus. 2.O grande dilema que se coloca neste momento a todas as sociedades pode resumir-se assim : deve continuar-se com a suspensão de todas as atividades que representem perigo de expansão da contaminação em detrimento da retoma da economia ou, pelo contrário, deveremos tomar medidas progressivas que reanimem a economia internacional, mesmo correndo o risco de uma explosão do número de infetados? Em minha opinião, não é um dilema, é uma inevitabilidade. Não se pode fechar um País durante muito mais tempo, sob pena de as perdas no sistema produtivo serem irreparáveis. Ou, como diz o povo, podemos não morrer da doença mas morrer da cura. E todos sabemos pelas notícias as falências, o aumento explosivo do número de desempregados, a fome que já atinge alguns países e que só não é mais grave porque os Estados tinham reservas acumuladas que puderam, até agora, minimizar os efeitos económicos e sociais da pandemia. Mas todos sabemos que a dívida dos países tem limites e que a única forma de um País injetar dinheiro na economia e na sociedade é ter receitas que lhes permita fazê-lo. Ora essas receitas resultam fundamentalmente dos impostos sobre as empresas e as pessoas e esses impostos só são possíveis se houver atividade económica. Não podemos continuar indefinidamente confinados ao teletrabalho: não se produzem alimentos, bens industriais, serviços essenciais em teletrabalho. A produção de bens requere a presença física e a atividade fora de casa. Esta é uma questão que me tem ocupado o muito tempo reduzido à minha casa há algumas semanas e formatei a ideia de que o desconfinamento, ainda que gradual, é necessário e urgente. Ainda que corramos o risco dum aumento de infetados. Por questões de idade e contingências de saúde sou uma pessoa de alto risco, isto é, se tiver o azar de contrair o Covid 19, é muito provável que vá desta para melhor. Mas é um risco que todos temos que correr. Resta-nos a esperança da imunidade por contágio enquanto não houver medicamento ou vacina. Não sou epidemiologista nem percebo nada da matéria, mas temos do nosso lado a baixíssima letalidade da vírus ( cerca de 2 por cento, segundo li) e que, salvo raras exceções, só é fatal em idades avançadas ( e mesmo assim cerca de 12 por cento para maiores de oitenta anos) ou pessoas com doenças crónicas graves. Abramos então a economia e a sociedade. Mas sem que sejamos contaminados pela segunda pandemia: o medo, a desconfiança. Tomemos as precauções devidas, mas voltemos a trabalhar, a estudar, a conviver, a frequentar restaurantes. É vital que a vida volte a ter alguma normalidade. Como vital é também que este resgate das nossas vidas seja concertado a nível mundial. Não esqueçamos que vivemos num mundo globalizado que tornou a economia de cada País dependente da dos restantes. Sou por natureza otimista mas neste caso não se trata duma questão de otimismo. Temos que abrir e, embora com tropeções e dúvidas, confio em que as coisas vão correr bem. PUB
3.Uma última nota que não posso deixar passar em branco. Os profissionais de saúde têm sido os verdadeiros heróis desta guerra: médicos, enfermeiros, auxiliares, assim como bombeiros, forças de segurança, agentes sociais.
Mas à boa maneira portuguesa, temos dois sérios inimigos nesta batalha: os burocratas e os intérpretes constitucionalistas – chamemos-lhes assim. Temos que perceber que as leis que se aplicam em situação normal têm que ser adaptadas em casos de emergência global, como esta pandemia. Para dar um exemplo da primeira, a burocracia, é inadmissível que para uma empresa conseguir o regime de lay-off tenha que tratar para cima duma dúzia de papéis, geralmente obtidos numa repartição pública que está fechada e não atende o telefone. Daqui nasce a subversão da ideia do lay-off : são as grandes empresas, com meios para recorrerem aos elementos exigidos, que mais beneficiam dele. Como exemplo do segundo, as tais interpretações jurídicas, é para mim óbvio que face a uma pandemia desta dimensão, não pode valer o normativo legal que antes estava em vigor, particularmente quando se tratam de medidas para a combater. Vem isto a respeito de ter ouvido, entre outros, o Bastonário da Ordem dos Advogados, dizer que para medir a temperatura dos trabalhadores à entrada das empresas, é necessário um profissional de saúde, porque a Constituição e mais isto e mais aquilo… Eu, cá por mim, estou disposto a abdicar temporariamente de alguns dos meus direitos, liberdades e privacidade se isso contribuir para combater a epidemia. * (Texto escrito antes do fim do período de emergência. Fez parte da edição impressa de 29 de abril) |
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