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Os norte-americanos estão a morrer quinze vezes mais por coronavírus do que os europeus ou mesmo do que os seus vizinhos canadianos.
Por que razão estará isto a ocorrer nos Estados Unidos da América? A resposta é óbvia: a ansiedade dos norte-americanos pela recuperação económica ganhou a dianteira e a impaciência levou-os a hipotecar o futuro próximo do país. Os governantes dos EUA, principais responsáveis pelo restart da economia norte-americana, deveriam ter sido os primeiros a dar o exemplo relativamente às medidas de contenção da Covid-19. Por exemplo, o uso de máscara deveria ter sido incentivado e tornado obrigatório numa fase mais precoce da pandemia. Em vez disso, o presidente dos EUA foi ridicularizando todos aqueles que usavam máscaras, chegando a apelidá-los de “politicamente corretos”. Os aspetos desconhecidos da Covid-19 são tantos e tão pertinentes que se impunha aos decisores políticos norte-americanos prudência em detrimento de ideologia. Mesmo para os “recuperados”, a imunidade não é garantida; a reinfeção pode ser possível; após recuperação, não há certeza de que o vírus não possa continuar a viver dentro nós; até os mais jovens são suscetíveis de hospitalização; os sobreviventes podem vir a sofrer consequências de longo prazo; com este vírus não há casos “leves”; não se conhecem atalhos para garantir imunidade. Por tudo isto, é sensatez e ponderação que se exige a quem decide. Mas não foi isso que aconteceu nos EUA. Então, estruturalmente, o que estará a acontecer nos Estados Unidos da América? É que a superpotência norte-americana revelou uma incapacidade inacreditável para fazer face a esta catástrofe sanitária. É certo que não havia (há) uma cartilha para fazer face a um acontecimento trágico com a magnitude da atual crise, mas também não é menos verdade que os norte-americanos têm sido muito menos competentes do que a maioria dos países afetados pela pandemia. Há uma explicação “direta” para o comportamento profundamente autodestrutivo do presidente norte-americano e dos seus apoiantes: o capitalismo e a convicção ideológica de que cada parte da sociedade norte-americana, movida apenas pelo seu egoísmo natural, acabará por encontrar a melhor de todas as soluções possíveis. Os atuais governantes dos EUA estão comprometidos com a proposição de que, havendo condições para que cada um dos norte-americanos se empenhe desenfreadamente na satisfação do seu interesse próprio, o país se desenvolverá globalmente mais. Segundo esta visão, a maximização ilimitada do lucro pelas empresas e as escolhas livres e não regulamentadas dos consumidores correspondem a tudo o que é necessário para ser possível alcançar a melhor de todas as sociedades. Atrevo-me a escrever que a defesa desta premissa tem tanto de intelectual como de emocional. É certo que a ciência económica atesta os aspetos positivos de alguns dos princípios da economia clássica e do liberalismo económico. No entanto, também não restam dúvidas de que esta corrente de pensamento - defendida pelos atuais decisores políticos nos EUA - tem falhas, e não são pequenas. Chega a ser irracional a intensidade do descontentamento dos governantes norte-americanos relativamente a alguma regulamentação absolutamente trivial. Na atualidade, já não se compreende a negação de que as ações de certas partes, sendo desregulamentadas, podem gerar consequências negativas para terceiros. Eu diria ainda mais: as ações de cada uma das partes que constituem uma sociedade devem, inclusivamente, considerar o bem-estar de todas as outras. Admito, ainda assim, a propósito desta última afirmação, alguma margem para discussão. A oposição veemente à regulamentação é justificada pelos liberais mais radicais norte-americanos como “defesa intransigente da liberdade de escolha”. No entanto, a fronteira entre “liberdade” e ausência de responsabilidade é, em bastantes casos, muito ténue. Reflitamos, por exemplo, acerca da problemática da poluição e dos que, à escala mundial, teimam em contrariar regulamentação nesta área, insistindo no direito à liberdade de escolha, ou seja, no direito de poluir. Num quadro-limite como o que atravessamos, de pandemia, a política não deve ser emocional; deve ser racional. Trata-se de não deixar margem para dúvidas relativamente à importância da assunção das responsabilidades individuais. A principal razão pela qual devemos usar máscara ou evitar aglomerações de pessoas não é a autoproteção. O problema é que o compartilhamento do nosso ar coloca os outros em risco. Este é o tipo de preocupação que alguns norte-americanos não aceitam. Na verdade, por vezes, parece que alguns responsáveis liberais se comportam de forma irresponsável. Olhemos, por exemplo, para a postura em público de algumas personalidades políticas norte-americanas e brasileiras durante o período da pandemia. A resistência dos liberais republicanos à responsabilidade social e ao aumento temporário de apoios aos desempregados também tem sido muito evidente. O período que atravessamos é histórico. Os benefícios sociais temporários e de natureza excecional não contribuem para aumentar a relutância dos norte-americanos em aceitar empregos. Esta é uma das ideias subjacentes à conceção liberal no sentido mais clássico (apoio ao capitalismo e ao liberalismo económico). Não é sequer o momento certo para discutirmos a natureza teórica e ideológica deste tema, mas é importante termos presente que, na perspetiva dos republicanos, apoiar socialmente os desempregados, mesmo que o desemprego resulte de variáveis difíceis de controlar (como é o caso da Covid-19), corresponde à admissão tácita de que os norte-americanos esforçados, trabalhadores ou afortunados devem ajudar os seus concidadãos menos esforçados ou com menos sorte. Alguns liberais são absolutamente radicais a este propósito. Mesmo perante uma conjuntura extrema como a que vivemos, não estão dispostos a abdicar daquele princípio ideológico. Em última análise, o que o coronavírus nos tem revelado acerca dos EUA é a insistência ideológica “cega” dos seus governantes na apologia ao direito de agir exclusivamente em nome do interesse próprio, mesmo que disso resulte inequivocamente prejuízo social e económico para terceiros. |
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