Colete Encarnado, Tempo de Festa, Tempo de Toiros
Por Luís Capucha
ociólogo, professor no ISCTE-IUL e investigador no CIES.
A maior parte das coisas que fazemos na vida obedece a regras e padrões institucionalizados de comportamento e de relacionamento social. As instituições, os sistemas de papéis em que se fundam, e a hierarquia que se estabelece entre diferentes papéis sociais são indispensáveis à existência da ordem (pelo menos mínima) e da previsibilidade que tornam possível a vida em sociedade.
A realidade ordenada e hierarquizada da vida social está presente em quase tudo o que fazemos de forma mais ou menos rotineira. Porém, ela choca com uma outra dimensão da existência das pessoas. Nós somos dotados de livre arbítrio, refletimos sobre quem somos e o que fazemos e podemos agir para mudar o estado das coisas. Para lá da ordem e das classes sociais resultantes dos diferentes papeis socialmente construídos, existe uma natureza humana que é livre e igualitária. Todos nascemos iguais, mas a ordem social torna-nos diferentes.
Esta dupla dimensão da existência humana gera tensões e atritos que a própria sociedade tende a resolver criando o espaço e o tempo de exceção e fuga em relação às regras, normas e constrangimentos do quotidiano. Esse tempo e esse espaço é o tempo e o espaço da Festa. É o tempo e o espaço da suspensão, ou mesmo da inversão, das regras correntes. São os momentos e os lugares excecionais em que se celebra a condição humana que partilhamos com todos os nossos semelhantes.
As Festas de Toiros, e em particular os toiros na rua, são particularmente notáveis desse ponto de vista. Força telúrica que não distingue classes nem estatutos sociais, o toiro, senhor da vida e da morte (verdade derradeira de toda a existência), recria o caos fundacional sobre o qual se ergue a ordem social. O toiro instaura na comunidade humana o lado dionisíaco da vida, em que se exacerbam as emoções, os excessos, o pulsar inebriante dos sentidos.
O Colete Encarnado é exemplar a esse respeito. Ansiosamente esperada todo o ano, e afanosamente preparada semanas antes por toda a cidade de Vila Franca, a Festa homenageia o campino, o maior cúmplice do toiro bravo. Homem do campo que traz o animal-totémico preso no galope das suas facas até à comunidade, para os momentos de maior frenesim, convívio, solidariedade, afirmação de identidade e exaltação festiva que a terra conhece.
Soltam-se os sentidos nas cores garridas dos coletes e mantas nas janelas, no cheiro intenso da sardinha assada, na música alegre nos palcos de rua e nas tertúlias, no gosto especial dos almoços e jantares em que os locais se juntam à mesa com os visitantes, no vinho que escorre pelas gargantas, nos corpos que se tocam numa multidão de gente que segue alegre pelos inebriantes espaços de convívio em que se transforma toda a cidade. Imperam sentimentos fortes de um tempo de exceção que torna mais fácil a vida ordenada, rotineira, feita de regras que nos constrangem, a que depois regressamos nos outros dias do ano. Pelo menos até à Feira de Outubro.
Por Luís Capucha
ociólogo, professor no ISCTE-IUL e investigador no CIES.
A maior parte das coisas que fazemos na vida obedece a regras e padrões institucionalizados de comportamento e de relacionamento social. As instituições, os sistemas de papéis em que se fundam, e a hierarquia que se estabelece entre diferentes papéis sociais são indispensáveis à existência da ordem (pelo menos mínima) e da previsibilidade que tornam possível a vida em sociedade.
A realidade ordenada e hierarquizada da vida social está presente em quase tudo o que fazemos de forma mais ou menos rotineira. Porém, ela choca com uma outra dimensão da existência das pessoas. Nós somos dotados de livre arbítrio, refletimos sobre quem somos e o que fazemos e podemos agir para mudar o estado das coisas. Para lá da ordem e das classes sociais resultantes dos diferentes papeis socialmente construídos, existe uma natureza humana que é livre e igualitária. Todos nascemos iguais, mas a ordem social torna-nos diferentes.
Esta dupla dimensão da existência humana gera tensões e atritos que a própria sociedade tende a resolver criando o espaço e o tempo de exceção e fuga em relação às regras, normas e constrangimentos do quotidiano. Esse tempo e esse espaço é o tempo e o espaço da Festa. É o tempo e o espaço da suspensão, ou mesmo da inversão, das regras correntes. São os momentos e os lugares excecionais em que se celebra a condição humana que partilhamos com todos os nossos semelhantes.
As Festas de Toiros, e em particular os toiros na rua, são particularmente notáveis desse ponto de vista. Força telúrica que não distingue classes nem estatutos sociais, o toiro, senhor da vida e da morte (verdade derradeira de toda a existência), recria o caos fundacional sobre o qual se ergue a ordem social. O toiro instaura na comunidade humana o lado dionisíaco da vida, em que se exacerbam as emoções, os excessos, o pulsar inebriante dos sentidos.
O Colete Encarnado é exemplar a esse respeito. Ansiosamente esperada todo o ano, e afanosamente preparada semanas antes por toda a cidade de Vila Franca, a Festa homenageia o campino, o maior cúmplice do toiro bravo. Homem do campo que traz o animal-totémico preso no galope das suas facas até à comunidade, para os momentos de maior frenesim, convívio, solidariedade, afirmação de identidade e exaltação festiva que a terra conhece.
Soltam-se os sentidos nas cores garridas dos coletes e mantas nas janelas, no cheiro intenso da sardinha assada, na música alegre nos palcos de rua e nas tertúlias, no gosto especial dos almoços e jantares em que os locais se juntam à mesa com os visitantes, no vinho que escorre pelas gargantas, nos corpos que se tocam numa multidão de gente que segue alegre pelos inebriantes espaços de convívio em que se transforma toda a cidade. Imperam sentimentos fortes de um tempo de exceção que torna mais fácil a vida ordenada, rotineira, feita de regras que nos constrangem, a que depois regressamos nos outros dias do ano. Pelo menos até à Feira de Outubro.
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