Razões para preocupação com a reestruturação do setor das águas
Por Rita Martins,
professora auxiliar Faculdade Economia Universidade Coimbra
Quando se estuda o setor das águas percebe-se que se trata de área muito propensa a emoções e pouco virada para a implementação de soluções racionalmente concebidas e discutidas. Meios-termos, múltiplos objetivos, complexidade de modelos e falta de clareza na definição das funções dos intervenientes e na comunicação de soluções expõem o setor a acessos e pouco esclarecedores debates.
Importa recordar que em termos organizacionais, desde a conceção de um modelo complexo na primeira metade da década de 1990, tem-se assistido em Portugal a sucessivos avanços e recuos na matéria. O assunto voltou a estar na ordem do dia desde a apresentação em 2014 de um plano de reestruturação do setor das águas (e do grupo Águas de Portugal - AdP) pelo Governo português, em consequência dos resultados insatisfatórios, em matéria organizacional e tarifária, do Programa Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águas Residuais (PEAASAR II). O plano de reestruturação apresentado tem sido justificado com argumentos de promoção da eficiência e sustentabilidade económico-financeira, entre outros. Em consequência, duas ordens de preocupações emergem: a primeira relacionada com a necessidade e a adequação do modelo de reorganização aos objetivos definidos e a segunda com a potencial preparação da privatização da AdP.
No que toca à primeira preocupação, o problema não está, em abstrato, nos objetivos definidos no plano, reconhecidas que são, designadamente, as virtudes da gestão integrada do recurso ou as caraterísticas de monopólio natural, de base local ou regional, do setor. O problema parece estar antes na capacidade do modelo traçado para assegurar, em particular, a sustentabilidade económica defendida. De -facto, a agregação dos atuais 19 sistemas multimunicipais em 5 mega sistemas não garante per se a promoção de tais objetivos. Neste sentido, é preciso perceber que as economias de escala, de gama e de processo não são infinitas, pelo que se as escalas eficientes forem ultrapassadas entrar-se-á em zonas de rendimentos decrescentes. A própria lógica da gestão integrada do recurso, necessária para a recuperação integral de custos (conforme imposição da Diretiva Quadro da Água), que faz todo o sentido à escala da bacia hidrográfica, é amplamente extravasada pelo modelo de fusão defendido, que vai para além do domínio, não só da bacia, como da região hidrográfica.
Em relação aos receios relacionados com a privatização (ainda que a mesma tenha sido negada, já em 2015, tanto pelo ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, como pelo presidente da AdP) este também não é tema novo em Portugal. Desde 1993 é permitida a participação privada no setor, sob a forma de concessão do direito de exploração (privatização em sentido lato). Acresce que a preocupação com o saneamento financeiro do grupo AdP parece seguir outros exemplos da história recente de Portugal, com o saneamento financeiro de empresas públicas a preceder a sua privatização. Para além disto, exemplos internacionais, como o caso inglês, seguiram um processo semelhante: agregação e posterior privatização da propriedade. Neste âmbito, a teoria económica permite-nos perceber que não é o tipo de propriedade que condiciona a promoção da eficiência mas antes a concorrência. E aqui chegados, o problema ganha nova dimensão, na medida que não existe campo para a promoção da concorrência em situações que uma única empresa gera a solução mais eficiente.
Preocupações com a reestruturação do grupo AdP e, mais em concreto, com a resolução do défice tarifário, estão reveladas em legislação recente, por exemplo na Lei da Fatura Detalhada (Lei n.º 12/2014 de 6 de março). Esta Lei impõe que as faturas detalhadas aos utilizadores finais incluam a decomposição das componentes de custo do serviço prestado, designadamente o custo do serviço em “alta”. Define também que a percentagem do produto da cobrança de cada fatura emitida pela entidade gestora do sistema municipal a afetar ao pagamento dos serviços prestados pela entidade gestora do sistema multimunicipal é de 50 % sobre o valor da fatura, em caso de dívidas dos municípios à AdP (decorrentes, muitas vezes, da imposição de consumos mínimos inadequados nos contratos de concessão).
Não será, porém, a obrigatoriedade de afetação de metade das receitas dos sistemas em “baixa” ao pagamento de dívidas aos operadores da “alta” que irá resolver a sua sustentabilidade económica a médio e longo prazo e, ainda menos, se se persistir em avançar com um modelo de agregação que ultrapasse as escalas eficientes.
29-06-2015
Por Rita Martins,
professora auxiliar Faculdade Economia Universidade Coimbra
Quando se estuda o setor das águas percebe-se que se trata de área muito propensa a emoções e pouco virada para a implementação de soluções racionalmente concebidas e discutidas. Meios-termos, múltiplos objetivos, complexidade de modelos e falta de clareza na definição das funções dos intervenientes e na comunicação de soluções expõem o setor a acessos e pouco esclarecedores debates.
Importa recordar que em termos organizacionais, desde a conceção de um modelo complexo na primeira metade da década de 1990, tem-se assistido em Portugal a sucessivos avanços e recuos na matéria. O assunto voltou a estar na ordem do dia desde a apresentação em 2014 de um plano de reestruturação do setor das águas (e do grupo Águas de Portugal - AdP) pelo Governo português, em consequência dos resultados insatisfatórios, em matéria organizacional e tarifária, do Programa Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águas Residuais (PEAASAR II). O plano de reestruturação apresentado tem sido justificado com argumentos de promoção da eficiência e sustentabilidade económico-financeira, entre outros. Em consequência, duas ordens de preocupações emergem: a primeira relacionada com a necessidade e a adequação do modelo de reorganização aos objetivos definidos e a segunda com a potencial preparação da privatização da AdP.
No que toca à primeira preocupação, o problema não está, em abstrato, nos objetivos definidos no plano, reconhecidas que são, designadamente, as virtudes da gestão integrada do recurso ou as caraterísticas de monopólio natural, de base local ou regional, do setor. O problema parece estar antes na capacidade do modelo traçado para assegurar, em particular, a sustentabilidade económica defendida. De -facto, a agregação dos atuais 19 sistemas multimunicipais em 5 mega sistemas não garante per se a promoção de tais objetivos. Neste sentido, é preciso perceber que as economias de escala, de gama e de processo não são infinitas, pelo que se as escalas eficientes forem ultrapassadas entrar-se-á em zonas de rendimentos decrescentes. A própria lógica da gestão integrada do recurso, necessária para a recuperação integral de custos (conforme imposição da Diretiva Quadro da Água), que faz todo o sentido à escala da bacia hidrográfica, é amplamente extravasada pelo modelo de fusão defendido, que vai para além do domínio, não só da bacia, como da região hidrográfica.
Em relação aos receios relacionados com a privatização (ainda que a mesma tenha sido negada, já em 2015, tanto pelo ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, como pelo presidente da AdP) este também não é tema novo em Portugal. Desde 1993 é permitida a participação privada no setor, sob a forma de concessão do direito de exploração (privatização em sentido lato). Acresce que a preocupação com o saneamento financeiro do grupo AdP parece seguir outros exemplos da história recente de Portugal, com o saneamento financeiro de empresas públicas a preceder a sua privatização. Para além disto, exemplos internacionais, como o caso inglês, seguiram um processo semelhante: agregação e posterior privatização da propriedade. Neste âmbito, a teoria económica permite-nos perceber que não é o tipo de propriedade que condiciona a promoção da eficiência mas antes a concorrência. E aqui chegados, o problema ganha nova dimensão, na medida que não existe campo para a promoção da concorrência em situações que uma única empresa gera a solução mais eficiente.
Preocupações com a reestruturação do grupo AdP e, mais em concreto, com a resolução do défice tarifário, estão reveladas em legislação recente, por exemplo na Lei da Fatura Detalhada (Lei n.º 12/2014 de 6 de março). Esta Lei impõe que as faturas detalhadas aos utilizadores finais incluam a decomposição das componentes de custo do serviço prestado, designadamente o custo do serviço em “alta”. Define também que a percentagem do produto da cobrança de cada fatura emitida pela entidade gestora do sistema municipal a afetar ao pagamento dos serviços prestados pela entidade gestora do sistema multimunicipal é de 50 % sobre o valor da fatura, em caso de dívidas dos municípios à AdP (decorrentes, muitas vezes, da imposição de consumos mínimos inadequados nos contratos de concessão).
Não será, porém, a obrigatoriedade de afetação de metade das receitas dos sistemas em “baixa” ao pagamento de dívidas aos operadores da “alta” que irá resolver a sua sustentabilidade económica a médio e longo prazo e, ainda menos, se se persistir em avançar com um modelo de agregação que ultrapasse as escalas eficientes.
29-06-2015
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