Na madrugada de 25 para 26 de novembro chuvas torrenciais inundam a região de Lisboa. Os valores da precipitação atingiram só na capital 77,5 mm num período que durou das 19 horas do dia 25 para a uma da manhã do dia 26. Na região, em Alenquer há quem diga que a água subiu quase aos quatro metros. A aldeia de Quintas, concelho de Vila Franca de Xira, foi a mais fustigada do país e onde alguns relatos falam em 90 mortos. Na primeira pessoa apresentamos os relatos de quem viveu esta tragédia por dentro e ainda tem uma história para contar 50 anos depois.
Sílvia Agostinho/Miguel António Rodrigues/Nuno Filipe
25-11-2017 às 16:57
Sílvia Agostinho/Miguel António Rodrigues/Nuno Filipe
25-11-2017 às 16:57
O pintor João Mário era em 1967 o mais jovem presidente de Câmara na altura. Tinha apenas 27 anos, e as cheias ocorreram poucos meses depois de ter tomado posse. Na sua memória, as primeiras recordações daquele dia começaram quando por volta da meia-noite a polícia lhe bateu à porta a dar a indicação de que a água já tinha subido três metros de altura. Na altura morava na subida para a Vila Alta, onde a água não conseguia chegar, mas na parte baixa, era já a tragédia e o caos que se tinha instalado com as pessoas a fugirem. Muita gente gritava em cima dos telhados a pedir socorro.
Uma das primeiras coisas que fez foi entrar em contacto com o comandante da base militar da Ota no sentido de enviar um jipe para Alenquer para que “se pudesse às primeiras horas da manhã salvar as pessoas que ainda estivessem vivas”, recorda-se. Muitas nos telhados, nos primeiros andares, ou como no caso de um comerciante de modas, na altura, em cima de uma prateleira. Quando o foram salvar estava já colado ao teto, porque a água ultrapassava o nível do balcão. “Ainda no outro dia estive com ele, foi um caso singular de alguém que conseguiu sobreviver porque o corpo estava totalmente dentro de água. Só a cabeça estava de fora”, conta João Mário. Mas muitas histórias se escreveram durante a tragédia, algumas bastante emotivas como a de um vizinho que vivia no primeiro andar e furou o chão que era de madeira para socorrer quem vivia no rés-do-chão, esquecendo zangas passadas. “Davam-se mal a valer, com questões em tribunal até, mas perante os gritos do vizinho (a mulher deste não conseguiu sobreviver) naquele momento abraçaram-se e esqueceram o que tinha acontecido”.
Outra das testemunhas privilegiadas de Alenquer face a este acontecimento foi o comerciante José Eduardo Lopes. Um ano antes da tragédia, o pai tinha inaugurado uma loja de moda e uma mercearia. A inauguração fez furor e até comerciantes da Lourinhã vieram conhecer. Decorada de forma moderna para a época, tudo a família viu desfazer-se em questão de poucas horas. Era uma hora da manhã quando José Eduardo Lopes hoje com 83 anos ouviu os gritos na rua de que vinha aí uma grande cheia. Teve tempo de se vestir e dirigir-se à loja. A família foi colocando as mercadorias em cima dos balcões. Nessa altura a água já tinha cerca de 20 centímetros, mas isso dentro da loja, porque fora já ia mais alta do que os seus olhos. Uma espessa camada de lama impedia naqueles momentos a entrada de rompante da cheia dentro do estabelecimento. “Quando vi aquilo pensava que estava apanhado na ratoeira, e disse para os meus pais para sairmos dali enquanto pudéssemos. Começámos a subir uma escada interior que havia e nisto rebenta um dos vidros da montra, a água começou a subir atrás de nós, até que conseguimos escapar”. A noite foi de uma “tremenda ansiedade”. As notícias de que amigos e vizinhos não tinham conseguido sobreviver foram chegando.
Uma das primeiras coisas que fez foi entrar em contacto com o comandante da base militar da Ota no sentido de enviar um jipe para Alenquer para que “se pudesse às primeiras horas da manhã salvar as pessoas que ainda estivessem vivas”, recorda-se. Muitas nos telhados, nos primeiros andares, ou como no caso de um comerciante de modas, na altura, em cima de uma prateleira. Quando o foram salvar estava já colado ao teto, porque a água ultrapassava o nível do balcão. “Ainda no outro dia estive com ele, foi um caso singular de alguém que conseguiu sobreviver porque o corpo estava totalmente dentro de água. Só a cabeça estava de fora”, conta João Mário. Mas muitas histórias se escreveram durante a tragédia, algumas bastante emotivas como a de um vizinho que vivia no primeiro andar e furou o chão que era de madeira para socorrer quem vivia no rés-do-chão, esquecendo zangas passadas. “Davam-se mal a valer, com questões em tribunal até, mas perante os gritos do vizinho (a mulher deste não conseguiu sobreviver) naquele momento abraçaram-se e esqueceram o que tinha acontecido”.
Outra das testemunhas privilegiadas de Alenquer face a este acontecimento foi o comerciante José Eduardo Lopes. Um ano antes da tragédia, o pai tinha inaugurado uma loja de moda e uma mercearia. A inauguração fez furor e até comerciantes da Lourinhã vieram conhecer. Decorada de forma moderna para a época, tudo a família viu desfazer-se em questão de poucas horas. Era uma hora da manhã quando José Eduardo Lopes hoje com 83 anos ouviu os gritos na rua de que vinha aí uma grande cheia. Teve tempo de se vestir e dirigir-se à loja. A família foi colocando as mercadorias em cima dos balcões. Nessa altura a água já tinha cerca de 20 centímetros, mas isso dentro da loja, porque fora já ia mais alta do que os seus olhos. Uma espessa camada de lama impedia naqueles momentos a entrada de rompante da cheia dentro do estabelecimento. “Quando vi aquilo pensava que estava apanhado na ratoeira, e disse para os meus pais para sairmos dali enquanto pudéssemos. Começámos a subir uma escada interior que havia e nisto rebenta um dos vidros da montra, a água começou a subir atrás de nós, até que conseguimos escapar”. A noite foi de uma “tremenda ansiedade”. As notícias de que amigos e vizinhos não tinham conseguido sobreviver foram chegando.
No dia seguinte, José Eduardo Lopes ia deitar mão ao que era preciso fazer dentro da loja mas pela frente tinha a sua família uma tarefa hercúlea. “A lama entrava para dentro dos botins”, recorda-se, mas também se lembra de um grande cofre que a família tinha que pesava 600 quilos que andou a boiar, mas onde a água não entrou porque mais uma vez a lama fez de cola nas fendas que existiam.
A tragédia que tirou a vida, segundo os dados oficiais da altura a 462 pessoas, mas diz-se que esse número chegou pelo menos a 700 na região, começou a ser notícia nas primeiras horas em Lisboa e nas localidades mais próximas. Alenquer parecia ser um concelho mais esquecido, e João Mário conta que teve de fazer soar a sua voz mais alta. Fez um comunicado para os jornais e o ministro telefonou-lhe a seguir. “Ralhou um bocadinho comigo mas veio a Alenquer passados dois dias”. No jornal “A Verdade”, dias depois podia ler-se uma comunicação do ministro do Interior em que se afirmava “vivamente impressionado com o esforço esgotante desenvolvido por vossa excelência (João Mário) na condução dos trabalhos e resolução complexa dos problemas provocados pela catástrofe”.
Apesar de mais distante, o concelho também foi alvo da solidariedade estudantil, uma das marcas mais evidentes deste acontecimento. Acorreram em massa a ajudar as vítimas das cheias um pouco por toda a parte, e em diversas ocasiões nem sempre foram bem vistos pela censura durante este acontecimento. Vieram estudantes de Lisboa, de Leiria e de Coimbra, entre outros locais. “Foi um movimento enorme”, enfatiza João Mário. Os estudantes integravam também brigadas de controlo sanitário de vacinação em massa contra a febre tifóide, realizaram no concelho, e um pouco por toda a região, inquéritos profiláticos, divulgaram informação sanitária, e organizaram creches para possibilitar o trabalho dos pais, refere um comunicado da Associação de Defesa do Ambiente do concelho de Alenquer (ALAMBI) enviado às redações evocativo desta data. Esses estudantes acabaram por ser vistos pelo Estado Novo como agitadores e uma presença pouco conveniente.
José Eduardo também se lembra bem deste movimento fantástico de pessoas, estudantes e não só, a quererem ajudar, não só de fora mas também do alto do concelho. “Todos os dias um grupo de 15 pessoas vinha dessas freguesias com o almoço para ajudarem nas limpezas e na reconstrução”. Aliás José Eduardo fala mesmo em três mil pessoas diariamente na vila a procederem àquele tipo de tarefas. Nesses dias não foram para os seus trabalhos no campo para virem ajudar. Nessa altura a solidariedade via-se em todo o tipo de oferendas – “Nunca tive tanta qualidade de fruta dentro da minha casa”, exemplifica. Amigos vindos de toda a parte iam chegando.
A tragédia que tirou a vida, segundo os dados oficiais da altura a 462 pessoas, mas diz-se que esse número chegou pelo menos a 700 na região, começou a ser notícia nas primeiras horas em Lisboa e nas localidades mais próximas. Alenquer parecia ser um concelho mais esquecido, e João Mário conta que teve de fazer soar a sua voz mais alta. Fez um comunicado para os jornais e o ministro telefonou-lhe a seguir. “Ralhou um bocadinho comigo mas veio a Alenquer passados dois dias”. No jornal “A Verdade”, dias depois podia ler-se uma comunicação do ministro do Interior em que se afirmava “vivamente impressionado com o esforço esgotante desenvolvido por vossa excelência (João Mário) na condução dos trabalhos e resolução complexa dos problemas provocados pela catástrofe”.
Apesar de mais distante, o concelho também foi alvo da solidariedade estudantil, uma das marcas mais evidentes deste acontecimento. Acorreram em massa a ajudar as vítimas das cheias um pouco por toda a parte, e em diversas ocasiões nem sempre foram bem vistos pela censura durante este acontecimento. Vieram estudantes de Lisboa, de Leiria e de Coimbra, entre outros locais. “Foi um movimento enorme”, enfatiza João Mário. Os estudantes integravam também brigadas de controlo sanitário de vacinação em massa contra a febre tifóide, realizaram no concelho, e um pouco por toda a região, inquéritos profiláticos, divulgaram informação sanitária, e organizaram creches para possibilitar o trabalho dos pais, refere um comunicado da Associação de Defesa do Ambiente do concelho de Alenquer (ALAMBI) enviado às redações evocativo desta data. Esses estudantes acabaram por ser vistos pelo Estado Novo como agitadores e uma presença pouco conveniente.
José Eduardo também se lembra bem deste movimento fantástico de pessoas, estudantes e não só, a quererem ajudar, não só de fora mas também do alto do concelho. “Todos os dias um grupo de 15 pessoas vinha dessas freguesias com o almoço para ajudarem nas limpezas e na reconstrução”. Aliás José Eduardo fala mesmo em três mil pessoas diariamente na vila a procederem àquele tipo de tarefas. Nesses dias não foram para os seus trabalhos no campo para virem ajudar. Nessa altura a solidariedade via-se em todo o tipo de oferendas – “Nunca tive tanta qualidade de fruta dentro da minha casa”, exemplifica. Amigos vindos de toda a parte iam chegando.
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Reportagem em vídeo do Valor Local junto de quem viveu esta tragédia de perto há 50 anos (assista na íntegra clicando na seta) *em breve documentário alargado sobre as cheias de 1967 |
Os contornos da tragédia em Alenquer foram de tal forma que três das quatro pontes existentes foram destruídas – “O nível da água subiu e rebentou furiosamente o chão de uma fábrica de cartão e papel que havia no Areal construída por cima do rio”, descreve o cenário diluviano - o pintor. Mas o pesadelo ainda ganharia contornos mais assustadores pois quando a cheia avançou para a fábrica, “toneladas de papel foram parar à água e quando isso aconteceu deu-se essa subida avassaladora”. “As próprias máquinas que também iam na cheia e o papel começaram a bater nas pontes e a fazerem uma espécie de açudes ou muralhas, e as pontes iam-se partindo uma a uma”. Tal descrição fez com que o cenário se pintasse a cores ainda mais negras e para lá do imaginável. Ficaram danificadas as pontes de Barnabé, Cadafais, Refugidos e Montegil no concelho durante a tragédia.
João Mário conta que uma amiga que se dirigia para a casa da irmã no Areal foi furiosamente levada pelas cheias depois de estas terem engolido a fábrica de papel. O corpo surgiu dias depois e vários quilómetros mais à frente na Vala do Carregado. Mas outros corpos houve que até apareceram em Vila Nova da Rainha. Noutra fábrica, neste caso um aviário, que existia na vila, na Romeira, outro dilúvio do outro mundo em que seis mil frangos morreram também nestas cheias num prejuízo total para o dono da empresa. Também muito gado no matadouro onde hoje é a biblioteca foi dizimado. Toneladas de trigo e de farinhas foram também por água abaixo. Mas volta a frisar, João Mário, que face aos prejuízos “os empresários foram muito bem compensados”.
João Mário conta que uma amiga que se dirigia para a casa da irmã no Areal foi furiosamente levada pelas cheias depois de estas terem engolido a fábrica de papel. O corpo surgiu dias depois e vários quilómetros mais à frente na Vala do Carregado. Mas outros corpos houve que até apareceram em Vila Nova da Rainha. Noutra fábrica, neste caso um aviário, que existia na vila, na Romeira, outro dilúvio do outro mundo em que seis mil frangos morreram também nestas cheias num prejuízo total para o dono da empresa. Também muito gado no matadouro onde hoje é a biblioteca foi dizimado. Toneladas de trigo e de farinhas foram também por água abaixo. Mas volta a frisar, João Mário, que face aos prejuízos “os empresários foram muito bem compensados”.
José Eduardo Lopes recorda que no seu caso enquanto empresário com uma casa recente à época, e cujo nome ainda hoje existe bem como o estabelecimento – a Augusto João Lopes e Filho Lda, os apoios dos fornecedores foram marcantes. O prejuízo foi total e refere que os balcões que eram de madeira foram parar ao Camarnal, a três quilómetros de Alenquer.
“O meu pai era um comerciante muito bem classificado e tudo obtivemos dos nossos fornecedores que se prontificaram de toda a maneira. Um fabricante de Mira de Aire levou daqui as malhas todas para serem lavadas no rio daquela localidade para depois serem devidamente reparadas. Isso custou-lhe um dinheirão”. Outra Fábrica de Viana do Castelo “levou uns panos para serem lavados nos tanques e quando a mercadoria regressou vinha impecável”. Outros comerciantes locais “lavaram as peças na adega do amigo, no tanque de outro amigo, com lixívia para cima, e esse tipo de artigos acabaram por não conhecer o melhor fim, enquanto os nossos foram tratados conscientemente”, relata. Combinou-se também que só ao fim de um ano é que a família pagaria a mercadoria que encomendasse doravante aos fornecedores. “Foi uma ajuda fantástica”, sintetiza.
“O meu pai era um comerciante muito bem classificado e tudo obtivemos dos nossos fornecedores que se prontificaram de toda a maneira. Um fabricante de Mira de Aire levou daqui as malhas todas para serem lavadas no rio daquela localidade para depois serem devidamente reparadas. Isso custou-lhe um dinheirão”. Outra Fábrica de Viana do Castelo “levou uns panos para serem lavados nos tanques e quando a mercadoria regressou vinha impecável”. Outros comerciantes locais “lavaram as peças na adega do amigo, no tanque de outro amigo, com lixívia para cima, e esse tipo de artigos acabaram por não conhecer o melhor fim, enquanto os nossos foram tratados conscientemente”, relata. Combinou-se também que só ao fim de um ano é que a família pagaria a mercadoria que encomendasse doravante aos fornecedores. “Foi uma ajuda fantástica”, sintetiza.
Solidariedade total para com as vítimas das cheias em Alenquer
Solidariedade foi então palavra de ordem. Também o povo português há cinquenta anos como em 2017 contribuiu massivamente quer nos primeiros dias da tragédia, quer depois com toda a sorte de ajudas desde meios financeiros a materiais. Diversos setores foram ajudados de diferentes formas como os lavradores, os comerciantes, e os bombeiros que ficaram sem nada para conseguir socorrer naquelas horas a população. A base de Ota forneceu carpinteiros, eletricistas para ajudar nas “anomalias provocadas pela água”. Lê-se no jornal “A Verdade”, daquela altura, sobre a chegada de um donativo de vários contos de reis de um cidadão anónimo. O próprio jornal enche colunas de a descrever os nomes dos ofertantes e os valores dos donativos.
A um palacete que havia em Alenquer onde se instalou o Instituto de Apoio à Família também chegavam todo o tipo de contributos. Dom José de Siqueira, vereador na Câmara, na altura, distribuía pela população sopa e sanduiches na vila todos os dias. “Tudo às suas custas. Ainda na semana passada andei a arranjar a campa dele. Era um homem de grande valor”, recorda José Eduardo Lopes. Também um grupo de mulheres de Abrigada vinha trazer víveres. José Eduardo diz que em parte este sentimento de agregação das pessoas também se deveu “ao homem dinâmico e extraordinário que é João Mário”, então presidente de Câmara.
Santos Júnior, então ministro do Interior, chegou dois dias depois a Alenquer, e João Mário confessa que ficaram amigos. Não hesita em qualificar como preponderante e inexcedível o apoio que o Estado deu ao município – “Era dinheiro por todo o lado”, enfatiza e até se começou a ouvir falar na expressão “totocheia” tendo em conta que raros foram os que não beneficiaram de ajudas e puderam recomeçar as suas vidas. Os primeiros subsídios começaram a ser atribuídos conta o jornal “A Verdade” a 19 de dezembro. Cerca de meio milhar de contos destinados ao comércio. A cerimónia teve lugar no salão nobre da Câmara. Na imprensa da época, nomeadamente no jornal “A Verdade”, é bastante elogiado o trabalho desenvolvido pelo presidente da Câmara João Mário ao ter conseguido o apoio do Governo do país com a captação de verbas para fazer face à necessidade de reconstrução de uma vila inteira e em parte do concelho.
Mesmo depois das cheias, o Governo de certa forma quis compensar o isolamento a que estava votado este território rural, bem como outros, e estradas foram alcatroadas e a eletrificação concretizada. As cheias tinham posto a nu um país rural, pobre e triste.
João Mário até se recorda que, durante os dias que se seguiram às cheias, em questão de horas conseguia apoios para o concelho – “A minha mulher ia para as ruas da baixa de Lisboa ver montras e eu reunia-me com Santos Júnior a fazer os meus pedidos. No outro dia à tarde já os apoios vinham a caminho”, conta esta pequena particularidade. Do estrangeiro também chegava “muito dinheiro” e um pouco por todo o país, empresas e particulares não se faziam rogados. A Gulbenkian construiu casas para os desalojados num bairro nas Paredes - “Cinquenta mil euros na altura que era muito dinheiro num total de 32 andares”. Jorge da Cunha Carmo cedera o terreno para esse bairro, e a Câmara de Angra do Heroísmo também apadrinhou um bairro na vila de Alenquer cedendo igualmente as verbas para a sua edificação. Igualmente as Câmaras de Santarém e Figueira da Foz ficaram na memória do antigo presidente de Câmara como das mais solidárias.
João Mário refere que, a dada altura, os benefícios tinham atingido proporções impensáveis. A história de uma mulher bastante pobre mas que não sofrera com as cheias ficou no imaginário alenquerense ligado a este acontecimento - “Essa senhora que era uma pobre coitada, e vivia mal, veio até mim queixar-se de que não tinha tido sorte nenhuma porque tinha vivido toda a vida na parte baixa de Alenquer, e mudara-se uma semana antes das cheias para a Vila Alta. Lamentava-se de não receber ajudas. Com pena dela lá a levei à Segurança Social para que também pudesse ter direito a alguma coisa”, conta.
João Mário apesar de ter governado a Câmara durante o Estado Novo, refere que não é saudosista desse tempo mas inegavelmente “é preciso dizer que não foi preciso nessa altura andarmos a fazer estudos para ver quem é que podia receber ajudas. Ainda as ruas estavam a ser limpas e já andava por Alenquer quem de direito a tomar nota do que era preciso. Os apoios vieram de forma imediata, e não houve zaragatas em que uns pudessem dizer que tinham mais direito do que os outros”. A falta de burocracia ajudou a acelerar o processo.
João Mário confessa que nunca fez nenhum cálculo sobre as ajudas, mas os prejuízos foram na altura incalculáveis. Só na vila de Alenquer morreram 10 pessoas, mas em Santana da Carnota, Cadafais e Carregado o cenário também foi negro. No total 46 pessoas perderam a vida no concelho. Isto segundo os dados oficiais. Segundo o comunicado da Alambi, e para além das dez na sede de concelho, morreram duas na freguesia de Santana da Carnota; uma na de Meca, 33 na freguesia de Cadafais; 10 no Casal dos Góis, e uma em Guizanderia. Embora na sua edição de 2 de dezembro “A Verdade” fale em 66 mortos no concelho.
Uma das lembranças mais permanentes daqueles dias relacionou-se com “o clima de amor gerado entre as pessoas”. Foi a partir das cheias que Alenquer elegeu o seu presépio como símbolo de fraternidade, embora ele já existisse. “Não há nada que una mais as pessoas do que uma tragédia comum. Viveu-se de facto um momento muito interessante na nossa história”, considera João Mário. Passados 50 anos, “o clima de afetos e de generosidade ajudou a atenuar a dor de uma população”. E há episódios que não lhe saem da memória – “O meu pai tinha uma loja que ficou inundada até ao teto e muitos vieram ajudar a limpar”. “Também me lembro do comandante da base da Ota ter vindo logo naquele domingo trazer pão que era para a alimentação dos militares e o ter distribuído pela população nas ruas”. Panelas cheias de comida enviadas por particulares também chegaram à vila. “Lembro-me que uns meses depois da tragédia, o João Mário organizou uma excursão em que fomos todos agradecer às pessoas do alto do concelho, freguesia a freguesia, por tudo o que tinham feito”, acrescenta José Eduardo Lopes. “Foi altamente reparador o envolvimento de todos os que quiseram colaborar”.
Alenquer aprendeu algumas lições com estas cheias, embora tenham sido implantadas muitos anos depois em alguns casos. O traçado do rio que era sinuoso passou a ser mais retilíneo, e as margens passaram a ser em pedra mais recentemente. Mas fundamentalmente corrigiu-se o arco da Ponte de Santa Catarina embora também passadas décadas. “A capacidade da ponte era de 1/3 para o caudal do rio, ou seja o buraco da ponte não conseguia suportar a enxurrada. Só quando chegava à estrada do Camarnal é que estabilizava”, diz José Eduardo Lopes que lidou com sete cheias durante a vida. Atualmente a capacidade da ponte aumentou e consegue suportar três vezes o caudal.
Já a Alambi salienta que neste domínio, o concelho não aprendeu muito: Depois do 25 de abril, a liberdade revolucionária permitiu a construção onde quer que fosse, e só em 1983 com a introdução do conceito de Reserva Ecológica Nacional foram introduzidas restrições à edificação em leito de cheia.
A um palacete que havia em Alenquer onde se instalou o Instituto de Apoio à Família também chegavam todo o tipo de contributos. Dom José de Siqueira, vereador na Câmara, na altura, distribuía pela população sopa e sanduiches na vila todos os dias. “Tudo às suas custas. Ainda na semana passada andei a arranjar a campa dele. Era um homem de grande valor”, recorda José Eduardo Lopes. Também um grupo de mulheres de Abrigada vinha trazer víveres. José Eduardo diz que em parte este sentimento de agregação das pessoas também se deveu “ao homem dinâmico e extraordinário que é João Mário”, então presidente de Câmara.
Santos Júnior, então ministro do Interior, chegou dois dias depois a Alenquer, e João Mário confessa que ficaram amigos. Não hesita em qualificar como preponderante e inexcedível o apoio que o Estado deu ao município – “Era dinheiro por todo o lado”, enfatiza e até se começou a ouvir falar na expressão “totocheia” tendo em conta que raros foram os que não beneficiaram de ajudas e puderam recomeçar as suas vidas. Os primeiros subsídios começaram a ser atribuídos conta o jornal “A Verdade” a 19 de dezembro. Cerca de meio milhar de contos destinados ao comércio. A cerimónia teve lugar no salão nobre da Câmara. Na imprensa da época, nomeadamente no jornal “A Verdade”, é bastante elogiado o trabalho desenvolvido pelo presidente da Câmara João Mário ao ter conseguido o apoio do Governo do país com a captação de verbas para fazer face à necessidade de reconstrução de uma vila inteira e em parte do concelho.
Mesmo depois das cheias, o Governo de certa forma quis compensar o isolamento a que estava votado este território rural, bem como outros, e estradas foram alcatroadas e a eletrificação concretizada. As cheias tinham posto a nu um país rural, pobre e triste.
João Mário até se recorda que, durante os dias que se seguiram às cheias, em questão de horas conseguia apoios para o concelho – “A minha mulher ia para as ruas da baixa de Lisboa ver montras e eu reunia-me com Santos Júnior a fazer os meus pedidos. No outro dia à tarde já os apoios vinham a caminho”, conta esta pequena particularidade. Do estrangeiro também chegava “muito dinheiro” e um pouco por todo o país, empresas e particulares não se faziam rogados. A Gulbenkian construiu casas para os desalojados num bairro nas Paredes - “Cinquenta mil euros na altura que era muito dinheiro num total de 32 andares”. Jorge da Cunha Carmo cedera o terreno para esse bairro, e a Câmara de Angra do Heroísmo também apadrinhou um bairro na vila de Alenquer cedendo igualmente as verbas para a sua edificação. Igualmente as Câmaras de Santarém e Figueira da Foz ficaram na memória do antigo presidente de Câmara como das mais solidárias.
João Mário refere que, a dada altura, os benefícios tinham atingido proporções impensáveis. A história de uma mulher bastante pobre mas que não sofrera com as cheias ficou no imaginário alenquerense ligado a este acontecimento - “Essa senhora que era uma pobre coitada, e vivia mal, veio até mim queixar-se de que não tinha tido sorte nenhuma porque tinha vivido toda a vida na parte baixa de Alenquer, e mudara-se uma semana antes das cheias para a Vila Alta. Lamentava-se de não receber ajudas. Com pena dela lá a levei à Segurança Social para que também pudesse ter direito a alguma coisa”, conta.
João Mário apesar de ter governado a Câmara durante o Estado Novo, refere que não é saudosista desse tempo mas inegavelmente “é preciso dizer que não foi preciso nessa altura andarmos a fazer estudos para ver quem é que podia receber ajudas. Ainda as ruas estavam a ser limpas e já andava por Alenquer quem de direito a tomar nota do que era preciso. Os apoios vieram de forma imediata, e não houve zaragatas em que uns pudessem dizer que tinham mais direito do que os outros”. A falta de burocracia ajudou a acelerar o processo.
João Mário confessa que nunca fez nenhum cálculo sobre as ajudas, mas os prejuízos foram na altura incalculáveis. Só na vila de Alenquer morreram 10 pessoas, mas em Santana da Carnota, Cadafais e Carregado o cenário também foi negro. No total 46 pessoas perderam a vida no concelho. Isto segundo os dados oficiais. Segundo o comunicado da Alambi, e para além das dez na sede de concelho, morreram duas na freguesia de Santana da Carnota; uma na de Meca, 33 na freguesia de Cadafais; 10 no Casal dos Góis, e uma em Guizanderia. Embora na sua edição de 2 de dezembro “A Verdade” fale em 66 mortos no concelho.
Uma das lembranças mais permanentes daqueles dias relacionou-se com “o clima de amor gerado entre as pessoas”. Foi a partir das cheias que Alenquer elegeu o seu presépio como símbolo de fraternidade, embora ele já existisse. “Não há nada que una mais as pessoas do que uma tragédia comum. Viveu-se de facto um momento muito interessante na nossa história”, considera João Mário. Passados 50 anos, “o clima de afetos e de generosidade ajudou a atenuar a dor de uma população”. E há episódios que não lhe saem da memória – “O meu pai tinha uma loja que ficou inundada até ao teto e muitos vieram ajudar a limpar”. “Também me lembro do comandante da base da Ota ter vindo logo naquele domingo trazer pão que era para a alimentação dos militares e o ter distribuído pela população nas ruas”. Panelas cheias de comida enviadas por particulares também chegaram à vila. “Lembro-me que uns meses depois da tragédia, o João Mário organizou uma excursão em que fomos todos agradecer às pessoas do alto do concelho, freguesia a freguesia, por tudo o que tinham feito”, acrescenta José Eduardo Lopes. “Foi altamente reparador o envolvimento de todos os que quiseram colaborar”.
Alenquer aprendeu algumas lições com estas cheias, embora tenham sido implantadas muitos anos depois em alguns casos. O traçado do rio que era sinuoso passou a ser mais retilíneo, e as margens passaram a ser em pedra mais recentemente. Mas fundamentalmente corrigiu-se o arco da Ponte de Santa Catarina embora também passadas décadas. “A capacidade da ponte era de 1/3 para o caudal do rio, ou seja o buraco da ponte não conseguia suportar a enxurrada. Só quando chegava à estrada do Camarnal é que estabilizava”, diz José Eduardo Lopes que lidou com sete cheias durante a vida. Atualmente a capacidade da ponte aumentou e consegue suportar três vezes o caudal.
Já a Alambi salienta que neste domínio, o concelho não aprendeu muito: Depois do 25 de abril, a liberdade revolucionária permitiu a construção onde quer que fosse, e só em 1983 com a introdução do conceito de Reserva Ecológica Nacional foram introduzidas restrições à edificação em leito de cheia.

Tragédia com histórias únicas de desespero e de sobrevivência
João Mário lembra a história de uma família nos Cadafais “onde um homem subiu ao telhado e depois a um poste de eletricidade, com as duas filhas ao colo, e não podendo salvar ambas teve de escolher uma. Sendo que quer uma quer outra acabaram por falecer bem como a mulher”. Outra das histórias funestas destas cheias foi a da mulher cujo corpo ficou em cima do pequeno edifício onde hoje funciona o posto de turismo no Parque Vaz Monteiro.
Mas uma das histórias mais emblemáticas deu-se no Bairro do Areal onde os cadáveres de várias pessoas da mesma família aguardavam a vez para serem transportados para a morgue. João Mário estava no local com a polícia a acompanhar as operações. “Pareceu-me ouvir a mulher respirar. O cabo respondia-me que não podia ser, que estava tudo morto. Insisti para que voltasse a senhora e lhe fizesse respiração boca a boca. Estava viva”. O marido, que trabalhava nas finanças, e os filhos faleceram.
Dias depois já no hospital ficou-se a saber como tinha conseguido sobreviver ao contrário da família – “Ficou entalada em pé desmaiada entre um móvel e a parede. Porque era muito pesada a peça de mobiliário nunca andou. Quando a água começou a descer, a senhora caiu mas não estava morta”. Mais tarde João Mário levou-a para trabalhar na Câmara como telefonista. Ainda hoje é viva e quando vem a Alenquer, pois vive no Algarve, visita o pintor.
João Mário lembra a história de uma família nos Cadafais “onde um homem subiu ao telhado e depois a um poste de eletricidade, com as duas filhas ao colo, e não podendo salvar ambas teve de escolher uma. Sendo que quer uma quer outra acabaram por falecer bem como a mulher”. Outra das histórias funestas destas cheias foi a da mulher cujo corpo ficou em cima do pequeno edifício onde hoje funciona o posto de turismo no Parque Vaz Monteiro.
Mas uma das histórias mais emblemáticas deu-se no Bairro do Areal onde os cadáveres de várias pessoas da mesma família aguardavam a vez para serem transportados para a morgue. João Mário estava no local com a polícia a acompanhar as operações. “Pareceu-me ouvir a mulher respirar. O cabo respondia-me que não podia ser, que estava tudo morto. Insisti para que voltasse a senhora e lhe fizesse respiração boca a boca. Estava viva”. O marido, que trabalhava nas finanças, e os filhos faleceram.
Dias depois já no hospital ficou-se a saber como tinha conseguido sobreviver ao contrário da família – “Ficou entalada em pé desmaiada entre um móvel e a parede. Porque era muito pesada a peça de mobiliário nunca andou. Quando a água começou a descer, a senhora caiu mas não estava morta”. Mais tarde João Mário levou-a para trabalhar na Câmara como telefonista. Ainda hoje é viva e quando vem a Alenquer, pois vive no Algarve, visita o pintor.

Antigo Bombeiro de Azambuja foi herói na tragédia
António Luís dos Santos, mais conhecido pelo Cagalhufa, é um dos antigos Bombeiros dos Voluntários de Azambuja. O bombeiro, que esteve 19 anos na corporação, passa em revista aqueles tempos, quando a 27 de novembro de 1967 o temporal levou a vida a 462 pessoas (dados oficiais) em vários concelhos da região de Lisboa.
No concelho de Azambuja, estas cheias não fizeram especiais estragos quando se compara com outros, mas a corporação concelhia participou das operações de salvamento na Vala do Carregado: “Avisaram-nos de que estava tudo morto por lá. Lá fomos nós, depois de um dia antes termos ficado a um passo de morrer gelados na Guarita dentro de um buick descapotável, com água pelo corpo todo. Antes de partirmos, ainda, bebemos um copo de aguardente para nos aquecermos. Para chegarmos ao Carregado primeiro tivemos de dar a volta pelo Cercal porque não podíamos passar a Vila Nova da Rainha. E toca de retirar as pessoas dentro do rio, e de dentro das suas casas, completamente geladas e às costas, mas a força de vontade era tanta, que dava gosto um gajo salvar qualquer pessoa”, conta à nossa reportagem.
Os bombeiros de Azambuja uma vez no terreno andavam literalmente dentro de água a tentar salvar pessoas do interior das suas habitações: os sobreviventes da desgraça. Em redor, o cenário era como se de uma guerra se tratasse, catastrófico, com dezenas de cadáveres “ali naquela várzea onde hoje estão lá armazéns mas na altura havia vinhas”. O bombeiro Mário Jorge que mais tarde foi comandante e os seus colegas salvaram naquele dia uns familiares que moravam na zona, sempre com água pelo peito, e com “os corpos dos vivos às costas, que durante a noite tinham apanhado aquele esticão todo de água, tentando salvar a pele em cima de móveis, e no cimo de escadas, e por onde desse, para não irem nas cheias”.
Como se fosse num filme num dia que “foi para esquecer” os bombeiros iam de casa em casa completamente afogueados e com a água sempre a dar-lhes pelo corpo numa busca incessante por quem ainda pudesse estar vivo. “À medida que o nível da água foi baixando os corpos iam aparecendo, totalmente cheios de lamas, no meio de uma chafurdice imensa. Nem se conseguia distinguir as roupas, aliás se não fosse pelos braços e pelas pernas nem se percebia que eram pessoas”.
Depois de um dia extraordinário pelos piores motivos em que os bombeiros arriscaram a sua vida, “mas estávamos a fazer o nosso trabalho” este acontecimento ainda reservava para António Luís dos Santos um novo episódio quando passadas poucas horas a sua mãe teve de ir para o Hospital de São José que naquela altura suportava uma avalanche de chegada de feridos e de mortos. “Havia corredores e salas cheios de cadáveres”, relata mais uma vez emocionado. Mas cheias naquela altura houve muitas e em Azambuja também teve a sua dose. Eram outros tempos e os meios também não eram muitos mas o querer chegava para dar e vender.
António Luís dos Santos, mais conhecido pelo Cagalhufa, é um dos antigos Bombeiros dos Voluntários de Azambuja. O bombeiro, que esteve 19 anos na corporação, passa em revista aqueles tempos, quando a 27 de novembro de 1967 o temporal levou a vida a 462 pessoas (dados oficiais) em vários concelhos da região de Lisboa.
No concelho de Azambuja, estas cheias não fizeram especiais estragos quando se compara com outros, mas a corporação concelhia participou das operações de salvamento na Vala do Carregado: “Avisaram-nos de que estava tudo morto por lá. Lá fomos nós, depois de um dia antes termos ficado a um passo de morrer gelados na Guarita dentro de um buick descapotável, com água pelo corpo todo. Antes de partirmos, ainda, bebemos um copo de aguardente para nos aquecermos. Para chegarmos ao Carregado primeiro tivemos de dar a volta pelo Cercal porque não podíamos passar a Vila Nova da Rainha. E toca de retirar as pessoas dentro do rio, e de dentro das suas casas, completamente geladas e às costas, mas a força de vontade era tanta, que dava gosto um gajo salvar qualquer pessoa”, conta à nossa reportagem.
Os bombeiros de Azambuja uma vez no terreno andavam literalmente dentro de água a tentar salvar pessoas do interior das suas habitações: os sobreviventes da desgraça. Em redor, o cenário era como se de uma guerra se tratasse, catastrófico, com dezenas de cadáveres “ali naquela várzea onde hoje estão lá armazéns mas na altura havia vinhas”. O bombeiro Mário Jorge que mais tarde foi comandante e os seus colegas salvaram naquele dia uns familiares que moravam na zona, sempre com água pelo peito, e com “os corpos dos vivos às costas, que durante a noite tinham apanhado aquele esticão todo de água, tentando salvar a pele em cima de móveis, e no cimo de escadas, e por onde desse, para não irem nas cheias”.
Como se fosse num filme num dia que “foi para esquecer” os bombeiros iam de casa em casa completamente afogueados e com a água sempre a dar-lhes pelo corpo numa busca incessante por quem ainda pudesse estar vivo. “À medida que o nível da água foi baixando os corpos iam aparecendo, totalmente cheios de lamas, no meio de uma chafurdice imensa. Nem se conseguia distinguir as roupas, aliás se não fosse pelos braços e pelas pernas nem se percebia que eram pessoas”.
Depois de um dia extraordinário pelos piores motivos em que os bombeiros arriscaram a sua vida, “mas estávamos a fazer o nosso trabalho” este acontecimento ainda reservava para António Luís dos Santos um novo episódio quando passadas poucas horas a sua mãe teve de ir para o Hospital de São José que naquela altura suportava uma avalanche de chegada de feridos e de mortos. “Havia corredores e salas cheios de cadáveres”, relata mais uma vez emocionado. Mas cheias naquela altura houve muitas e em Azambuja também teve a sua dose. Eram outros tempos e os meios também não eram muitos mas o querer chegava para dar e vender.

Santana da Carnota ficou isolada
Em Santana da Carnota, António Gomes, hoje com 74 anos, tinha-se casado há uma semana quando as cheias aconteceram. Aquela foi uma das localidades mais crucificadas com a intempérie com a ribeira de Santana a galgar e a fazer muitos estragos e vítimas, nomeadamente dois mortos. António Gomes diz que o cenário era de tal maneira que até dava para passar um barco no meio da estrada. Na altura não se faziam limpezas no rio, que subiu cerca de um metro e meio. “As pessoas ficaram sem nada”. Também nesta pequena localidade à semelhança do resto do concelho a palavra solidariedade fez-se sentir – “As pessoas do alto de Santana vieram ajudar as da zona baixa, nomeadamente, a minha mulher que era uma esposa de oito dias. O comércio de Santana ficou todo destruído, e no meu caso que já tinha a loja mas de mercearias, durante mais de oito dias andaram por aqui a ajudar a limpar e a lavar o que existia”. Também recebeu ajudas. “Chegaram a dizer que tínhamos sido contemplados com o totocheia, mas isso não passou de conversa de café”.
Os bombeiros só chegaram a Santana passados uns dias, “porque Alenquer estava pior do que nós e nas Quintas tinha morrido muita gente”. Não havia telefones e Santana ficou isolada durante vários dias. António Gomes é com emoção que se recorda do esforço que um vizinho fez para chegar a pé até Torres Vedras e daí até à Silveira já à boleia para avisar a família do comerciante, oriunda daquela zona, do que se estava a passar na localidade e no concelho de Alenquer. “Foi daqui de noite para nos conseguir ajudar porque não havia telemóveis como hoje”. Depois da tragédia “agarrámos na loja e com a ajuda dos amigos fomos para a frente com coragem”. Para trás ficaram os dias negros, em que até “fardos de bacalhau acabados de chegar de Lisboa foram nas cheias”, refere ao lembrar-se dos prejuízos.
Em Santana da Carnota, António Gomes, hoje com 74 anos, tinha-se casado há uma semana quando as cheias aconteceram. Aquela foi uma das localidades mais crucificadas com a intempérie com a ribeira de Santana a galgar e a fazer muitos estragos e vítimas, nomeadamente dois mortos. António Gomes diz que o cenário era de tal maneira que até dava para passar um barco no meio da estrada. Na altura não se faziam limpezas no rio, que subiu cerca de um metro e meio. “As pessoas ficaram sem nada”. Também nesta pequena localidade à semelhança do resto do concelho a palavra solidariedade fez-se sentir – “As pessoas do alto de Santana vieram ajudar as da zona baixa, nomeadamente, a minha mulher que era uma esposa de oito dias. O comércio de Santana ficou todo destruído, e no meu caso que já tinha a loja mas de mercearias, durante mais de oito dias andaram por aqui a ajudar a limpar e a lavar o que existia”. Também recebeu ajudas. “Chegaram a dizer que tínhamos sido contemplados com o totocheia, mas isso não passou de conversa de café”.
Os bombeiros só chegaram a Santana passados uns dias, “porque Alenquer estava pior do que nós e nas Quintas tinha morrido muita gente”. Não havia telefones e Santana ficou isolada durante vários dias. António Gomes é com emoção que se recorda do esforço que um vizinho fez para chegar a pé até Torres Vedras e daí até à Silveira já à boleia para avisar a família do comerciante, oriunda daquela zona, do que se estava a passar na localidade e no concelho de Alenquer. “Foi daqui de noite para nos conseguir ajudar porque não havia telemóveis como hoje”. Depois da tragédia “agarrámos na loja e com a ajuda dos amigos fomos para a frente com coragem”. Para trás ficaram os dias negros, em que até “fardos de bacalhau acabados de chegar de Lisboa foram nas cheias”, refere ao lembrar-se dos prejuízos.
Quintas para sempre ficou como a aldeia mártir
Na localidade de Quintas, freguesia de Castanheira do Ribatejo, foi onde a tragédia causou um maior número de mortes, mais de 60 e no total da freguesia 83, mas há relatos que falam em 90 mortos. Ainda hoje esta aldeia vive sob o espectro do que aconteceu há 50 anos, sem que a população se tivesse refeito completamente do que aconteceu. Nas cheias ficaram familiares, amigos e conhecidos. Ainda hoje esta povoação se sente um pouco à margem na região e os populares acreditam que pouco se tem feito na questão do ordenamento do território para que uma tragédia destas não volte a acontecer.
O casal António Macedo, e Maria José, ambos com 78 anos, têm uma história para contar. Porque no meio da tragédia, foi com alguma sorte que a sua mulher conseguiu sobreviver. Conta António Macedo que nessa noite teve de se ausentar da Castanheira para o norte do Ribatejo porque a mãe estava doente. A sogra conseguiu convencer a filha a ficar a dormir na sua casa, dado que ia ficar sozinha naquela noite. Não era hábito quando o marido se ausentava. E foi a primeira vez em cinco anos. A habitação da mãe de Maria José ficava num ponto mais alto de Quintas. Se tivesse permanecido naquela noite na sua casa não teria resistido à inundação. Ela e os seus dois filhos.
António Macedo ficou a saber do dilúvio no dia seguinte à tragédia, no Entroncamento, quando o ardina andava a distribuir os jornais. “Fiquei preocupado. Tentei perceber melhor o que se estava a passar, e a primeira povoação de que ouvi falar foi a dos Cadafais, junto a Quintas. Seis pessoas já tinham morrido ali. Quando cheguei cá encontrei tudo num pandemónio”. As autoridades encontravam-se à entrada da aldeia. A sua família estava bem, mas no Casal Pataco onde costumava ficar “moravam oito e ficaram cinco”. “Cá fora toda a gente chorava”, junta Maria José. A água criara uma espécie de barreira junto à Ponte da Couraça, devido ao entulho. Um muro com metro e meio de altura ao longo da estrada cedeu e a água inundou toda a várzea.
Na memória deste casal ainda estão os corpos estendidos nas estradas da povoação a serem lavados por uma agulheta. Eram às dezenas. Mas também houve casos incríveis de sobrevivência como o caso de uma senhora que foi aparecer ainda viva no cimo de uma laranjeira – “Nem ela se lembra como”, refere o morador. Casos houve em que os corpos das pessoas ficaram marcados no teto dada a força da lama e da água que as empurrou até ao cimo. “Isto dá uma ideia de como a água subiu cerca de dois a três metros”.
Na memória deste casal ainda estão os corpos estendidos nas estradas da povoação a serem lavados por uma agulheta. Eram às dezenas. Mas também houve casos incríveis de sobrevivência como o caso de uma senhora que foi aparecer ainda viva no cimo de uma laranjeira – “Nem ela se lembra como”, refere o morador. Casos houve em que os corpos das pessoas ficaram marcados no teto dada a força da lama e da água que as empurrou até ao cimo. “Isto dá uma ideia de como a água subiu cerca de dois a três metros”.
Joana Ferreira, 59 anos, foi uma das sobreviventes que naquela noite andou na água. Na localidade faz-se esta distinção entre os que conseguiram sobreviver escapando das cheias tendo andado ou não dentro de água. Pressupõe-se bem no meio da inundação. “Nas vésperas caia uma chuva miudinha que ninguém dizia no que se tornaria”. Não se lembra de muita coisa, pois tinha apenas nove anos, mas o pai ao abrir a porta avisou que teriam que arranjar maneira de fugir. “Fomos para a casa da mãe da Nelinha, onde a água também começou a entrar, mas depressa tivemos de fugir. Tinha irmãos mais novos do que eu. A dada altura não sabíamos onde estava a minha mãe. O meu pai e o meu irmão mais velho foram à procura dela de candeeiro de petróleo na mão. Estava num sótão de uns vizinhos”. Com nove anos não conseguia ter perceção e entendimento completo sobre o que se estava a passar apenas se lembra de ouvir muitos gritos e no dia seguinte “muitos cadáveres pela rua fora”. “Nunca me esqueci, amigas minhas dessas idades morreram nessa noite. Lembro-me de brincar com elas todas”.
Em Quintas, diz a população, que os apoios foram escassos. Os tais estudantes da época que marcaram pela sua solidariedade este período também apareceram, mas apoios “foram zero”, diz Joana Ferreira acrescentando que à época “o regime abafou muita coisa”. “Não houve reconstrução. Os meus pais ficaram apenas com dois braços para trabalhar e seis filhos para criar”. Toda a família sobreviveu, “mas se não tivéssemos sido avisados pelo vizinho tínhamos morrido todos”.
Em Quintas, diz a população, que os apoios foram escassos. Os tais estudantes da época que marcaram pela sua solidariedade este período também apareceram, mas apoios “foram zero”, diz Joana Ferreira acrescentando que à época “o regime abafou muita coisa”. “Não houve reconstrução. Os meus pais ficaram apenas com dois braços para trabalhar e seis filhos para criar”. Toda a família sobreviveu, “mas se não tivéssemos sido avisados pelo vizinho tínhamos morrido todos”.
Luísa Fajarda, 63 anos, na altura com 13, relata que na sua casa a água não entrou pela porta apenas alguma pelo telhado mas os gritos das pessoas lá fora ainda hoje ressoam na sua mente. Faleceram nas cheias os seus avós maternos e uma irmã que vivia com eles. “Moravam lá mais abaixo perto do rio”. A casa ficou destruída e os corpos foram na enxurrada. O corpo da irmã apareceu logo, mas o da avó só na segunda de manhã, e o do avô só ao fim de nove dias. Neste último caso já perto do local onde hoje funciona a fábrica da Italagro. Como ele, muitos outros foram parar à Vala do Carregado e à Castanheira. Lidar com uma realidade assim nunca foi fácil, mas nunca se consegue superar a dor das perdas que aconteceram de um modo tão violento. “A dor era imensa mas foi tudo tão instantâneo que não deu para assimilar logo. Com o passar dos anos é que vamos percebendo a dimensão do que nos sucedeu”. A mãe faleceu 40 anos depois da intempérie e sempre falou disso. A população local “também nunca conseguiu ultrapassar. Toda a gente perdeu alguém”.
Durante o mandato enquanto presidente da junta de freguesia de Castanheira do Ribatejo, Ventura Reis, renovou o monumento de homenagem às vítimas, e que hoje se encontra numa das entradas da aldeia. Todos os anos, a autarquia faz uma pequena cerimónia evocativa da efeméride. A tragédia que entre a freguesia da Castanheira e a aldeia dos Cadafais fez cerca de 90 mortos explica-se também em parte pela falta de limpeza do Rio Grande da Pipa e a edificação das casas em pleno leito de cheia e onde uma qualquer inundação faria estragos. Estamos numa várzea. Com os valores de precipitação alcançados, e para os fracos meios existentes há 50 anos, a tragédia seria mais do que certa. Aliás devido a esta catástrofe, Alenquer e Vila Franca de Xira estão classificados entre os concelhos com maior número de mortos resultantes dos acontecimentos hidrogeológicos entre 1900 e 2006, segundo a Alambi. A bacia do Rio Grande da Pipa “produziu” nas cheias de 1976: cerca de 140 mortos.
Nesse dia 27 de novembro, o antigo presidente e atual tesoureiro da junta, veio a pé até Quintas e mal chegou deparou-se com os vários corpos estendidos no chão e tentou ajudar como pôde. Alguns colegas que trabalhavam consigo na Tudor faleceram. Não havia apoio psicológico profissional e “tínhamos de nos ajudar uns aos outros”. Para piorar “a censura tentava abafar o número de mortes”. A tragédia deu-se um ano antes de Salazar abandonar o poder. O atual presidente da União De Freguesias da Castanheira do Ribatejo e Cachoeiras, Luís Almeida, não tem memórias das cheias, mas não tem dúvidas de que houve algo de “verdadeiramente dantesco” nesta terra. Apesar de este ano se assinalar uma data redonda, as cerimónias evocativas continuarão a ser discretas como têm sido “porque a tragédia ainda está muito presente, mexe muito com esta população”. “No passado houve a tentativa de se fazer algo mais elaborado que chocou a comunidade”.
Arruda dos Vinhos também foi outro dos concelhos atingidos. Maria Augusta Costa que na altura tinha 15 anos e trabalhava numa fábrica de componentes eletrónicos na Fresca, lembra-se de que chovia há muitas horas seguidas “mas ninguém previa o que se estava a passar”. Ela e as colegas depois de saírem da empresa aguardavam pelo autocarro que nunca mais chegava e que as devia levar a localidades vizinhas de Arruda. O autocarro não veio. Já se sabia que algumas pessoas tinham ido na cheia em outras localidades. Um comerciante de Arruda ao saber da tragédia e ao saber que muitas mulheres estavam nas proximidades da fábrica à espera de voltarem para casa, partiu para o local e fez uma série de viagens para transportar as trabalhadoras até suas casas.
Entre Sobral e Arruda várias pessoas acabaram por morrer nestas cheias. Alguns corpos apareceram mas outros nunca foram descobertos. “No dia seguinte um trator que estava junto à paragem já tinha ido cheia abaixo. Se lá continuássemos possivelmente não teríamos conseguido sobreviver”. Muita lama era visível, mas também com muitos animais mortos e até porcos se via em cima das árvores naqueles dias. No concelho de Arruda morreram 12 pessoas.
Nesse dia 27 de novembro, o antigo presidente e atual tesoureiro da junta, veio a pé até Quintas e mal chegou deparou-se com os vários corpos estendidos no chão e tentou ajudar como pôde. Alguns colegas que trabalhavam consigo na Tudor faleceram. Não havia apoio psicológico profissional e “tínhamos de nos ajudar uns aos outros”. Para piorar “a censura tentava abafar o número de mortes”. A tragédia deu-se um ano antes de Salazar abandonar o poder. O atual presidente da União De Freguesias da Castanheira do Ribatejo e Cachoeiras, Luís Almeida, não tem memórias das cheias, mas não tem dúvidas de que houve algo de “verdadeiramente dantesco” nesta terra. Apesar de este ano se assinalar uma data redonda, as cerimónias evocativas continuarão a ser discretas como têm sido “porque a tragédia ainda está muito presente, mexe muito com esta população”. “No passado houve a tentativa de se fazer algo mais elaborado que chocou a comunidade”.
Arruda dos Vinhos também foi outro dos concelhos atingidos. Maria Augusta Costa que na altura tinha 15 anos e trabalhava numa fábrica de componentes eletrónicos na Fresca, lembra-se de que chovia há muitas horas seguidas “mas ninguém previa o que se estava a passar”. Ela e as colegas depois de saírem da empresa aguardavam pelo autocarro que nunca mais chegava e que as devia levar a localidades vizinhas de Arruda. O autocarro não veio. Já se sabia que algumas pessoas tinham ido na cheia em outras localidades. Um comerciante de Arruda ao saber da tragédia e ao saber que muitas mulheres estavam nas proximidades da fábrica à espera de voltarem para casa, partiu para o local e fez uma série de viagens para transportar as trabalhadoras até suas casas.
Entre Sobral e Arruda várias pessoas acabaram por morrer nestas cheias. Alguns corpos apareceram mas outros nunca foram descobertos. “No dia seguinte um trator que estava junto à paragem já tinha ido cheia abaixo. Se lá continuássemos possivelmente não teríamos conseguido sobreviver”. Muita lama era visível, mas também com muitos animais mortos e até porcos se via em cima das árvores naqueles dias. No concelho de Arruda morreram 12 pessoas.
Cheias de 1967 deviam ser mais estudadas e aprofundado o seu conhecimento
Um dos poucos estudos realizados até hoje no âmbito deste acontecimento pertence a um grupo de estudiosos de várias universidades portuguesas e intitula-se “Inundações na região de Lisboa… um olhar sobre o impacto político e social”. Francisco da Silva Costa (Universidade do Minho); Miguel Cardina (Universidade de Coimbra) e António Avelino Batista Vieira (Universidade do Minho) apresentaram esse estudo em Santiago do Chile em 2014 durante um simpósio de Geografia Física. O estudo tentou identificar quer os fatores que estiveram na origem do acontecimento, mas também a evolução da situação, os impactes e a gestão da tragédia. Até à data pouca documentação foi produzida sobre este acontecimento que os especialistas desejariam ver mais desenvolvida de modo a podermos tirar mais lições para o futuro sobretudo numa altura em que tanto se fala de alterações climáticas.
Ao Valor Local, Francisco da Silva Costa refere que determinados aspetos da vida do Portugal de então funcionaram como detonadores, na região de Lisboa, para a elevada taxa de mortalidade resultante desta tragédia. Estamos a falar, à época, de uma população composta por uma elevada franja de pessoas vindas do interior no início da década de 60. O êxodo rural maciço na área periurbana de Lisboa levou à implantação de bairros de génese ilegal e à construção de barracas. Na altura, foi a resposta possível face à ausência de uma política de habitação. Por isso, a escassez de alojamento a baixos custos teve de ser minimizada com a construção de bairros de barracas e de construção clandestina em pequenas bacias de fortes limitações físicas e ambientais. Inevitavelmente estas condicionantes sociais não podem ser dissociadas das condições atmosférica anormais que “resultaram em precipitações intensas e concentradas excecionais que se verificaram nas últimas horas do dia.” “Poderemos dizer que não se conhecia o risco, não havia sistema de alerta e a gestão da crise foi feita sem estrutura capaz de dar resposta fazendo sobressair a falta de um serviço de proteção civil”, consubstancia o especialista. As vulnerabilidades são ainda mais evidentes nos concelhos mais afetados quando sabemos que apenas foram verificados quatro mortes no interior da cidade de Lisboa.
A acrescer a tudo isso, acrescenta Francisco da Silva Costa, e quanto à lista das vítimas, temos de ter a noção de que as operações de recolha e a identificação dos mortos foram realizadas em condições deploráveis, locais desadequados e sem os meios e recursos necessários. Muitas autópsias não foram realizadas. A última contagem efetuada e divulgada uma semana depois apresentou um total de 462 mortos. No entanto, no final de dezembro ainda foram encontrados corpos. Por isso, não existe uma lista completa e validada o que levou a vários estudos e estimativas apontarem para valores que oscilam entre os 500 e os 700 mortos. Já sobre o movimento de solidariedade “foi à época de uma dimensão extraordinária”, não tem dúvidas em referir o professor de Geografia Económica e Social.
Acrescenta ainda o estudioso que na Área Metropolitana de Lisboa ocorreram mais duas cheias particularmente marcantes, tanto pela magnitude das precipitações que lhes deram origem, como pelas consequências humanas e materiais que tiveram: em novembro de 1983 e em fevereiro de 2008. Os números das cheias de 1983 e 2008 foram substancialmente menos destruidoras devido à redução da vulnerabilidade: sete mortos e 610 casas afetadas em 1983, enquanto em 2008 contabilizaram-se três mortos e problemas de circulação rodoviária.
Um dos poucos estudos realizados até hoje no âmbito deste acontecimento pertence a um grupo de estudiosos de várias universidades portuguesas e intitula-se “Inundações na região de Lisboa… um olhar sobre o impacto político e social”. Francisco da Silva Costa (Universidade do Minho); Miguel Cardina (Universidade de Coimbra) e António Avelino Batista Vieira (Universidade do Minho) apresentaram esse estudo em Santiago do Chile em 2014 durante um simpósio de Geografia Física. O estudo tentou identificar quer os fatores que estiveram na origem do acontecimento, mas também a evolução da situação, os impactes e a gestão da tragédia. Até à data pouca documentação foi produzida sobre este acontecimento que os especialistas desejariam ver mais desenvolvida de modo a podermos tirar mais lições para o futuro sobretudo numa altura em que tanto se fala de alterações climáticas.
Ao Valor Local, Francisco da Silva Costa refere que determinados aspetos da vida do Portugal de então funcionaram como detonadores, na região de Lisboa, para a elevada taxa de mortalidade resultante desta tragédia. Estamos a falar, à época, de uma população composta por uma elevada franja de pessoas vindas do interior no início da década de 60. O êxodo rural maciço na área periurbana de Lisboa levou à implantação de bairros de génese ilegal e à construção de barracas. Na altura, foi a resposta possível face à ausência de uma política de habitação. Por isso, a escassez de alojamento a baixos custos teve de ser minimizada com a construção de bairros de barracas e de construção clandestina em pequenas bacias de fortes limitações físicas e ambientais. Inevitavelmente estas condicionantes sociais não podem ser dissociadas das condições atmosférica anormais que “resultaram em precipitações intensas e concentradas excecionais que se verificaram nas últimas horas do dia.” “Poderemos dizer que não se conhecia o risco, não havia sistema de alerta e a gestão da crise foi feita sem estrutura capaz de dar resposta fazendo sobressair a falta de um serviço de proteção civil”, consubstancia o especialista. As vulnerabilidades são ainda mais evidentes nos concelhos mais afetados quando sabemos que apenas foram verificados quatro mortes no interior da cidade de Lisboa.
A acrescer a tudo isso, acrescenta Francisco da Silva Costa, e quanto à lista das vítimas, temos de ter a noção de que as operações de recolha e a identificação dos mortos foram realizadas em condições deploráveis, locais desadequados e sem os meios e recursos necessários. Muitas autópsias não foram realizadas. A última contagem efetuada e divulgada uma semana depois apresentou um total de 462 mortos. No entanto, no final de dezembro ainda foram encontrados corpos. Por isso, não existe uma lista completa e validada o que levou a vários estudos e estimativas apontarem para valores que oscilam entre os 500 e os 700 mortos. Já sobre o movimento de solidariedade “foi à época de uma dimensão extraordinária”, não tem dúvidas em referir o professor de Geografia Económica e Social.
Acrescenta ainda o estudioso que na Área Metropolitana de Lisboa ocorreram mais duas cheias particularmente marcantes, tanto pela magnitude das precipitações que lhes deram origem, como pelas consequências humanas e materiais que tiveram: em novembro de 1983 e em fevereiro de 2008. Os números das cheias de 1983 e 2008 foram substancialmente menos destruidoras devido à redução da vulnerabilidade: sete mortos e 610 casas afetadas em 1983, enquanto em 2008 contabilizaram-se três mortos e problemas de circulação rodoviária.
Durante a estadia em Santiago do Chile durante a qual o estudo foi dado a conhecer saíram algumas conclusões importantes. A comunidade científica e a investigação atual apontam que o futuro deve passar pelo “uso do conhecimento, da inovação, e das novas tecnologias ao seu serviço, mas também pela capacitação e empoderamento das comunidades locais no que respeita ao planeamento participativo; e da gestão do risco de inundação.”
Outra das conclusões salientadas tem a ver com o facto de que determinados territórios menos vezes afetados por este tipo de acontecimentos, estes tendem a preparar-se menos para as eventualidades futuras: “Um longo período sem inundações produz frequentemente o efeito de esquecimento ou de negligência do risco de inundação pelo indivíduo e pela comunidade. O tempo médio de memória varia, mas para quem vivencia a tragédia de forma direta, alguns estudos apontam para oito anos para cair no esquecimento e indiretamente três anos.” E por isso encontramos situações diferenciadas, e exemplifica: “Em alguns países mais desenvolvidos como os Países Baixos, há uma vivência permanente com as inundações o que resulta numa perceção mais próxima da realidade deste tipo de ocorrências. Já em países lusófonos como o Brasil e Moçambique, podemos falar de sociedades do esquecimento. Vejam-se as tragédias que já tivemos associadas a inundações nestes dois países e que caíram no esquecimento. Infelizmente no caso das inundações de Lisboa, o componente de inscrição na memória é escassa. Mais do que isso, trata-se de um assunto muito pouco estudado pela investigação nos meios académicos.”, conclui.
Outra das conclusões salientadas tem a ver com o facto de que determinados territórios menos vezes afetados por este tipo de acontecimentos, estes tendem a preparar-se menos para as eventualidades futuras: “Um longo período sem inundações produz frequentemente o efeito de esquecimento ou de negligência do risco de inundação pelo indivíduo e pela comunidade. O tempo médio de memória varia, mas para quem vivencia a tragédia de forma direta, alguns estudos apontam para oito anos para cair no esquecimento e indiretamente três anos.” E por isso encontramos situações diferenciadas, e exemplifica: “Em alguns países mais desenvolvidos como os Países Baixos, há uma vivência permanente com as inundações o que resulta numa perceção mais próxima da realidade deste tipo de ocorrências. Já em países lusófonos como o Brasil e Moçambique, podemos falar de sociedades do esquecimento. Vejam-se as tragédias que já tivemos associadas a inundações nestes dois países e que caíram no esquecimento. Infelizmente no caso das inundações de Lisboa, o componente de inscrição na memória é escassa. Mais do que isso, trata-se de um assunto muito pouco estudado pela investigação nos meios académicos.”, conclui.
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