EXCLUSIVO A crise da Avipronto contada por quem a viveu História de uma tempestade perfeita onde tudo “correu mal”
Sílvia Agostinho 04-07-2020 às 11:48
Passados dois meses do surto de Covid-19 na Avipronto que abalou o concelho de Azambuja, e toda a região com 129 trabalhadores infetados é possível fazer-se um primeiro balanço e um pouco de história. Citando aqui a célebre Lei de Murphy: Aquilo que podia ter corrido mal na Avipronto correu mesmo mal e na pior altura possível. É assim que trabalhadores e sindicatos interpretam já com, algumas semanas de distância, este que foi um dos maiores surtos no país no setor da indústria em geral. Negligência, descoordenação, incompetência são alguns dos termos que usam para se referirem à conduta da empresa, do grupo Lusiaves. A par das chefias de Azambuja também a delegada de saúde do concelho de Azambuja é vista como persona non grata para estes trabalhadores.
Tudo começou, conta Rui Matias do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura, das Indústrias de Alimentação, Bebidas e Tabacos de Portugal (SINTAB), no dia 23 de abril, ou seja oito dias antes da entrada em cena das entidades de saúde, e de serem conhecidos os primeiros casos de Covid-19 naquela fábrica, pela comunicação social, quando entraram em contacto com o diretor da Avipronto, Pedro Vítor, sobre o aparecimento das primeiras pessoas infetadas. “Já sabíamos que estavam em casa nessa altura”. Não eram mais de cinco ou seis casos. Nesse dia, o sindicato questionou Pedro Vítor sobre o que estava em cima da mesa quanto a medidas da empresa, que informou que “a situação estava controlada porque os trabalhadores mantinham-se em casa”. Alegou ainda que “mais tarde se pronunciaria sobre esta situação”, preferindo refugiar-se no silêncio naquele momento. De 20 a 30 de abril, já se sabia que a situação podia tornar-se explosiva a qualquer momento. Foram dias angustiantes, a temer pelo pior e com a adrenalina ao rubro por parte dos trabalhadores da empresa, sobretudo mulheres, muitas com mais de 50 anos, e por isso pertencentes a um dos grupos de risco mais vulneráveis à doença. Nessa semana, foram aparecendo mais casos. Ou seja, apesar de o Valor Local ter sido o primeiro órgão de comunicação social a avançar com o início do surto na Avipronto, no dia um de maio, com um total de sete casos, pelo menos cerca de doze já tinham sido identificados até aquele dia. De 23 a 30 de abril “a nossa estrutura sindical fez muita pressão junto do engenheiro Pedro Vítor sobre esta questão”. Ao mesmo tempo “os trabalhadores mostravam-se muito agitados face a todas as notícias que já se conheciam sobre esta doença e o medo estava instalado”. A única posição oficial da empresa apenas aconteceu a dois de maio sobre o que se estava a passar dentro de portas. É sobre este hiato temporal que o Ministério Público vai-se debruçar após queixa da GNR que será investigada por omissão do número de casos da doença durante aquele período.
Nas últimas semanas de maio, a empresa enviou para os seus colaboradores infetados um questionário disciplinar no sentido de averiguar “indícios de eventuais violações do plano de contingência da empresa por parte dos trabalhadores que vieram a acusar positivo nos testes”. Facto que o sindicato considera que pode “roçar a ilegalidade” dado que incide sobre questões relacionadas com a lei da proteção de dados. A Avipronto coloca preguntas aos funcionários que passam por saber “o dia em que começaram a ter sintomas de Covid”; “em que dia contactaram as autoridades de saúde”; ou “quando realizaram o primeiro teste de controlo”; e “em que dia souberam o resultado”. Para o sindicato “esta é uma forma de a empresa arranjar aqui um bode expiatório”. “São perguntas bastante incriminatórias para os trabalhadores que se não conseguirem responder podem sofrer um processo disciplinar”, refere Rui Matias. (Este comportamento foi denunciado, e segundo apurámos depois desta entrevista, a empresa não terá levado até ao fim este questionário).
Segundo fonte ligada ao sindicato que não quis ser identificada para esta reportagem “é alegado pela empresa que havia trabalhadores a tomarem medicação que não avisaram a Avipronto”. “Tentei falar com o diretor da fábrica no final de abril, ainda antes do feriado de dia 25, mas ele desviava-se da conversa. Aleguei que já sabia que havia casos positivos na empresa, nomeadamente, duas pessoas, que estavam em casa, mas outras que tinham estado em contacto com elas continuavam a trabalhar”. E por isso “Fui aos recursos humanos da empresa alegar que tinha estado em contacto com quem estava contaminado e não me disseram nada”. Nessa altura decidiu ligar para a Saúde 24, “e pediram-me para ficar os 14 dias em isolamento”. Durante o período que antecedeu a descoberta dos primeiros casos, cerca de uma semana, “não havia máscaras”, refere a nossa fonte. “As instalações estavam desinfetadas, havia gel para as mãos, conseguia-se manter as distâncias de segurança no refeitório, mas isso não acontecia nos balneários com cerca de 30 homens lá dentro”. Ao mesmo tempo “o doutor Pedro Vítor dizia que estavam a seguir as indicações da Direção Geral de Saúde”. Mais tarde acabariam por fornecer máscaras de pano. “Chegaram a utilizar do seguinte argumento – Se quisesse uma máscara tinha de trazer um papel do médico”. Uns tinham máscaras e outros não.
Rui Matias fala num caso que correu mal sobretudo devido às chefias de Azambuja e delegada de saúde
Entretanto e numa data mais próxima à descoberta do surto, a atitude da empresa mudou- “Já nos davam, para as deslocações, máscara, luvas e fato descartável. Possivelmente porque já sabiam que havia mais casos de Covid-19, embora o negassem sempre. Mas nós desconfiávamos, porque no início do surto as carrinhas iam cheias, mas a dada altura cada veículo transportava menos funcionários, numa carrinha de nove lugares seguiam apenas quatro pessoas, e com mais distância de segurança.” Em conclusão, o sindicato opina que “aquela semana em que não tivemos máscaras foi o rastilho para o surgimento do surto”. O sindicato também acusa a empresa “de nem sempre medir a temperatura aos funcionários” que se chegaram a queixar mas sem eco.
Os sindicalistas dão conta que entre o final de março e início de abril trabalhadores indianos que tinham estado no seu país de origem foram trabalhar sem cumprir quarentena no regresso, embora o caso tenha sido negado pelas chefias. “Mais tarde foram enviados para casa e soube-se que tinham estado infetados”.
Rui Matias elucida que a Avipronto e o grupo Lusiaves são dos mais importantes do país no abate e comércio de carnes, mas “os pequenos poderes” acabaram por deitar tudo a perder tendo em conta o enquadramento da pandemia – “São pessoas sem sensibilidade, sem capacidade de liderança e com pouca apetência para o que se deseja a nível de condições de trabalho”, principalmente quando estamos a falar de “mão-de-obra feminina, muitas delas mães e avós”, que “realizam um trabalho muito duro nas linhas de produção”. Rui Matias é taxativo – “Não se pode dizer que a Avipronto foi ingénua e que confiou na sorte, foi antes um sério caso de irresponsabilidade”, e vai mais longe – “O surto pandémico teve como única explicação a má gestão da empresa”. Rui Matias diz ainda que “a administração do grupo Lusiaves não estava na pose da informação toda do que se estava a passar na unidade de Azambuja”. “Não sabiam da missa a metade, porque batia tudo no diretor de fábrica e nos recursos humanos internos em Azambuja”. E por isso diz mesmo – “Essas pessoas contribuíram decisivamente para o que se veio a verificar no terreno. Não podemos dizer que anteviam fielmente que mais de 100 e tal pessoas iam ficar doentes. O desconhecimento acerca desta doença era grande, mas não podiam ignorar que as pessoas não estavam bem e que havia muitos relatos a prever o que se passou. As medidas não foram tomadas atempadamente”.
O sindicato refere que “um trabalhador no dia 28 de abril aconselhou o diretor da fábrica a dar uma palavra às pessoas, porque já tínhamos medo de entrar lá dentro”. O tom perante o diretor de fábrica chegou a ser de súplica – “Diga por favor àquelas pessoas que estão lá em baixo a trabalhar quantos casos temos aqui dentro para que possamos ganhar ainda mais cautelas, mas ele nunca o fez”. Na semana que antecedeu o início do mês de maio “o meu telefone não parava”, refere Rui Matias. O pânico e os receios avolumavam-se de dia para dia. “Foi horrível”, sentencia e diz mesmo que “as chefias sabiam precisamente o que estavam a fazer, porque a dada altura do processo mandaram para casa funcionárias com mais de 60 anos, sem justificação nenhuma”.
Dos 129 infetados, “uma funcionária esteve em coma mas sabemos que já saiu dos cuidados intensivos”. “Felizmente não foi como noutros países lá fora onde morreu muita gente, e quando temos uma média de idades alta naquela empresa, caso contrário nem sei onde é que podíamos ter chegado”, refere o sindicalista. A disseminação de casos nesta empresa não pode ser ainda atribuída aos transportes públicos – “porque a maioria vem trabalhar nas carrinhas da empresa, à noite, ou então de transporte próprio”.
Incompetência e passividade da delegada de saúde
A figura da delegada de saúde é das mais criticadas pelo sindicato a par das chefias. Uma vez no terreno, Túlia Quinto, segundo o sindicato, não mostrou desenvoltura nem autoridade.
Chegou-se a dizer que depois de encerrada a empresa, no dia dois de maio, que a Avipronto estava a contactar os trabalhadores para irem trabalhar no domingo, três de maio, mas os sindicalistas dizem que isso nunca chegou a acontecer. “É totalmente falso, fartei-me de negar isso centenas de vezes, a maioria dos trabalhadores foi contactada, naquela altura, para efetuar os testes”, refere Rui Matias – “Apenas foi necessário naqueles dias proceder ao transporte de carne que estava em câmara pronta para ser carregada para não se estragar e ir para o lixo”, diz o sindicato.
Para Rui Matias, “a delegada de saúde teve procedimentos muito demorados, e levou demasiado tempo a agir, e com decisões muito deficitárias”, como se não fosse necessária mais do que uma solução “tipo penso rápido”. “Não sei se estava a ser pressionada pela empresa ou não, mas também só se deixa pressionar quem quer”, sustenta perante a nossa questão quanto a pressões da administração. “Foi muito má tecnicamente prova disso é que achava que não era preciso testar toda a gente”. Só quando a notícia de um surto na Avipronto “começa a tomar contornos nacionais com a chegada ao terreno de todo o tipo de meios de comunicação social é que a postura se alterou”.
Ouvida a delegada de saúde pelo Valor Local, Túlia Quinto refere que havia conhecimento de apenas um caso em finais de abril, dia 26, e não mais do que isso. O dia um de maio foi uma data complicada –“ Foi feita uma visita à empresa mas eu não estive no terreno porque naquele dia não havia circulação entre concelhos. Estive em casa mas andei sempre atenta, de tal forma que naquele dia elaborei um documento para a empresa, até porque estive sempre em contacto com a medicina do trabalho da Avipronto”.
A delegada de saúde fala numa possível discrepância de casos porque “como há trabalhadores de vários pontos da região, alguns foram notificados para a sua área de residência”. A delegada de saúde recusa a ideia de que não foi atuante e que se deixou pressionar – “Não era só eu a estar no comando da situação, também a Direção Geral de Saúde esteve. Estamos a falar de uma articulação em rede. O que fiz foi basicamente a ponte. Compreendo as críticas se sobretudo forem construtivas porque ninguém queria que isto tivesse acontecido”. Túlia Quinto realça que os testes a todos os trabalhadores começaram logo a ser realizados nos dias seguintes à descoberta do surto.
Muitos trabalhadores foram testados pela empresa, outros tantos através da Saúde 24, e “quando cruzaram os dados e viram que a contabilidade já ia em 100 e tal infetados, aí sim tomaram-se todas as medidas ao melhor estilo depois de casa roubada trancas à porta”, sintetiza Rui Matias.
Em jeito de conclusão e passados dois meses do caso Avipronto, “tivemos na fábrica de Azambuja o que se pode chamar de tempestade perfeita com o comportamento já conhecido por parte das chefias, a que se juntou a incompetência da delegada de saúde, mais os seis ou sete dias em que os trabalhadores andaram a trabalhar completamente expostos ao pior”. Nessa altura “não tínhamos em Portugal nenhuma empresa com um surto daquela dimensão”. A dada altura o sindicato percebeu que a delegada de saúde já não decidia nada “e que tudo estava a ser centralizado e monopolizado pela Direção Geral de Saúde em Lisboa”. Recorde-se que foi o próprio secretário de Estado, e coordenador Covid-19 para a região, Duarte Cordeiro, quem deu ordem de fecho à Avipronto perante o caos instalado no terreno, durante um telefonema pela noite dentro do presidente da Câmara, Luís de Sousa, e da presidente da junta de Azambuja, Inês Louro, face à inoperância da delegada de saúde.
“A partir dessa altura tudo mudou, a administração da Lusiaves mudou, e a disponibilidade também. Enquanto o caso esteve entregue às chefias locais de Azambuja só houve más notícias”. O sindicato saúda ainda a postura do destacamento da GNR de Alenquer “que teve muita coragem perante a população para avançar com esta queixa no Ministério Público”. O SINTAB vai constituir-se como assistente deste processo. “Estamos aqui para ajudar os trabalhadores, a administração da empresa e a população no geral para que esta situação nunca mais aconteça”.
O Valor Local contactou a empresa com um conjunto de questões por escrito mas não obtivemos resposta.