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 Imagem Vítor Grade, um dos sobreviventes
Acidente da Póvoa de Santa Iria: 30 Anos Depois a Dor Continua

Miguel António Rodrigues/Sílvia Agostinho
21-03-2016 às 21:40

Era para ser apenas mais uma segunda-feira banal de regresso ao trabalho e às aulas para muitas dezenas de pessoas da região, sobretudo do concelho de Vila Franca de Xira, mas uma alegada falha humana, conforme destacam os jornais da época, aliada a um atraso do comboio rápido que vinha da Covilhã precipitou o desastre no dia 5 de maio de 1986. A composição embateu contra um transvia causando a morte a 18 pessoas: 11 morreram no interior dos comboios, faleceram ainda 2 passageiros que estavam à espera de embarcar, e cinco pessoas já nos hospitais. Oitenta ficaram feridas. Este foi um dos acidentes mais emotivos da história dos caminhos-de-ferro em Portugal, talvez porque a composição transportava na sua maioria jovens com destino às escolas e faculdades de Lisboa. Aconteceu há 30 anos na Póvoa de Santa Iria e vamos em busca dessas memórias junto de vítimas, familiares, autarcas e antigos bombeiros.

Para Vítor Grade, com 20 anos na altura, este foi um acontecimento que deixou marcas profundas. Residia em Alverca, e por hábito apanhava o comboio em causa com destino à Escola Secundária Chelas-Olivais, como tantos outros colegas. “Íamos todos na brincadeira na última carruagem, como habitualmente”, lembra-se. Em situações normais, o transvia tinha de aguardar no resguardo e dar prioridade ao rápido, contudo como ainda não efetuara a manobra, e como a composição da Covilhã circulava com atraso, acabou por se encontrar na mesma via, sendo literalmente abalroado pela composição mais possante. No transvia, que se preparava para deixar a estação da Póvoa, seguiam muitos jovens do concelho de Vila Franca. Quando Vítor Grade se apercebeu da aproximação do comboio rápido, instalou-se o alvoroço e o pânico. A composição com origem na Beira Baixa terá passado por sinais que deveriam estar a vermelho.

“Lembro-me que comecei a saltar por cima dos assentos, porque tive a sensação de que podia ficar com as pernas cortadas se os bancos se juntassem”. Foi este o primeiro pensamento de Vítor Grade perante a aproximação do comboio. Como ele “toda a gente tentou escapar dali, mas curiosamente não houve gritos”, recorda-se, mas talvez porque entretanto perdeu a consciência desses factos. “Segundo os bombeiros, desci sozinho a escada de mão, e quando cheguei ao solo caí para o lado”. “Na minha memória apenas me lembro de ter visto o comboio a aproximar-se, e a seguir acordar a meio da cirurgia plástica que me estavam a fazer”. Teve de fazer várias operações de modo a reconstruir a face. No hospital não lhe quiseram dizer que alguns dos seus amigos tinham morrido, nomeadamente, o jovem casal que frequentava o ensino superior na capital, Rui Benavente e a sua namorada Maria de Lurdes, moradores em Alhandra.

“O meu filho morreu com 21 anos, queria ser arquiteto, andava no curso de Belas Artes. Tinha boas notas. Era bom filho, era bom de todas as maneiras”, recorda José Benavente, pai de Rui cujos sonhos de uma carreira profissional e de uma vida em comum com a namorada foram terrivelmente interrompidos.

O sentimento de que a vida pode mudar em questão de segundos também o tem bem presente Ofélia Janeiro, igualmente estudante à época, com 18 anos, mas que sofreu ferimentos ligeiros. –“Sempre tentei que o acidente não condicionasse o meu futuro, mas claro que condiciona. Em coisas básicas como a questão sempre presente de que um sopro, um segundo, muda a vida para sempre, ou acaba com ela. E isso condiciona não tanto a nossa relação com o medo do que nos possa acontecer, mas do que pode acontecer a quem amamos. Essa impotência condiciona-nos.” “Sempre disse ao meu filho para nunca ir na última carruagem, parece que estava mesmo a adivinhar”, sentencia por seu lado José Benavente, sintetizando – “Não há dia nenhum que não me lembre do que aconteceu”.
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“A minha filha era um anjo de Deus. Era do melhor. Tanto ela como o Rui eram duas joias”, recorda por seu turno outro dos familiares enlutados, Joaquim Dias, pai de Maria de Lurdes, 21 anos, que “andava nas Belas Artes”. “Gostava imenso de pintar”. “Ela e o namorado eram inseparáveis, queriam casar. O Rui era um excelente rapaz, infelizmente já não há desses”. Joaquim Dias até se lembra que a filha não era para ter ido no comboio com o namorado, “mas infelizmente aconteceu”. 



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Operações demoraram várias horas no terreno
​Joaquim Dias e a mulher assim que souberam da notícia correram de imediato todos os hospitais de Lisboa à procura da filha. “Mas só ao fim do dia, é que soube que ela e o namorado tinham sido os últimos a serem retirados dos destroços do comboio”. “Foi uma dor muito grande”.

A vida dos que sobreviveram nunca mais foi a mesma. “Estava, na altura, a fazer um curso de teatro, do qual desisti. Também não segui para a faculdade. Quis aproveitar a vida ao máximo, e se possível de imediato”, refere Vítor Grade. Perdeu muitos amigos no acidente, nomeadamente, o casal de Alhandra, e uma das suas primeiras decisões após a tragédia foi ir viver para Lisboa sozinho, “para não ter de andar de comboio”. Passados quase 30 anos, considera que não ficou traumatizado, apesar de ter “permanecido alguns anos sem andar regularmente de comboio”.

Vítor Grade foi um dos que vivendo em Alverca ainda teve a sorte consigo, pois várias foram as vítimas mortais provenientes daquela localidade. Paula Coelho, que na altura estava no conselho diretivo da Escola Secundária Gago Coutinho, ainda se lembra do velório de cerca de cinco pessoas nos bombeiros de Alverca. “Foi feito um cordão humano até ao cemitério. Tentámos dar o máximo de apoio aos alunos que ficaram sem os colegas, mas também a uma funcionária que perdeu a filha que se encontrava no comboio”.
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No caso de Ofélia Janeiro, esta recorda que não era habitual apanhar aquele comboio. Vivia em Alhandra e preparava-se para ter uma aula suplementar de História na escola secundária de Chelas-Olivais, onde andava. “Naquele comboio iam muitas pessoas conhecidas. Ao meu lado ia a minha melhor amiga, que saltou do comboio antes do impacto. (Crê-se que a tragédia podia ter sido maior tendo em conta que 20 pessoas pularam para fora da composição) e pelo menos fisicamente saiu ilesa. Mas iam mais amigos, colegas de escola e conhecidos de Alverca. Muitos morreram outros ficaram feridos com muita gravidade”, conta. Passados 30 anos, “a perda das pessoas é inexplicável”, “uma sensação de vazio que perdura até hoje”, refere.

Quando o comboio embateu no transvia que ficou por cima do rápido, “a primeira sensação foi de um ruído ensurdecedor”, prossegue o seu relato, Ofélia Janeiro. “Eu estava a meio da última carruagem, a rever um trabalho da escola, comecei a ouvir um barulho, e quando olhei em frente vi as pessoas a correrem na minha direção. Só me apercebi do que se passava depois do choque. Lembro-me de ter agarrado a mala para manter os documentos comigo e, quando aquele terremoto parou, segurei a mala de um rapaz para que ajudasse um bebé, que estava bem, felizmente. A minha carruagem ficou em cima do rápido que chocou connosco.”, descreve destacando ter sofrido parcas mazelas – “apenas uns cortes na cabeça, numa perna e numa mão”. A passageira do transvia recorda que voltou a andar de comboio, “poucos dias depois, aterrorizada, mas consciente de que o medo não podia vencer”.


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Antigo comandante junto ao velho quartel
 Imagem António Silvestre ainda guarda os jornais da altura
​Bombeiros da Póvoa lembram falta de meios e cenário dantesco

​A corporação de bombeiros da Póvoa de Santa Iria ficava mesmo ao lado da estação, e aquele 5 de maio de 1986 “foi tudo menos um dia normal”, recorda ao Valor Local o comandante dos soldados da paz à época, Afonso Rita, atualmente no quadro de honra. Chefiar a corporação perante um acidente daquelas dimensões e tendo em conta a escassez de material e de homens foi uma tarefa gigantesca. “No quadro tínhamos perto de 90 homens, mas apareceram bombeiros de todo o lado, quase 400 da região de Lisboa”.

O comandante ia a caminho de um almoço quando foi chamado via rádio para um acidente às portas do quartel. Já tinham sucedido suicídios, alguns sustos, mas nada que se comparasse com o que Afonso Rita iria ver minutos depois. Ainda sem saber da real dimensão do acidente, o comandante pediu ajuda a militares da GNR com quem se cruzou a caminho da estação “que se revelaram fundamentais para a fluidez dos trânsito nas horas seguintes.”

António Silvestre, hoje com 68 anos, era um jovem bombeiro da corporação da Póvoa na altura. Vinha de um serviço à Maternidade Alfredo da Costa quando o seu colega da central começou a convocar todos os bombeiros porque tinha acontecido “um grande acidente ferroviário na Póvoa”. “Quando cheguei ao local, presenciei uma situação dantesca, com muitos corpos dilacerados e com os órgãos internos visíveis. Perdi a conta ao número de vezes que transportei feridos ao hospital de Vila Franca”.

Aliás diz mesmo que naquele dia, “as artérias de Vila Franca de Xira tinham mais gente na rua do que num dia de largadas do Colete Encarnado. Desde a entrada da cidade até ao hospital, era incalculável o número de pessoas a ver as ambulâncias passarem”.
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Aflição era palavra de ordem e neste âmbito o bombeiro Silvestre lembra-se particularmente de uma senhora que lhe perguntou se tinha visto um homem que vinha de Castelo Branco e que trazia um cesto de fruta com ele: “De imediato associei a um homem que retirara dos escombros já sem vida”. 

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O insólito também aconteceu quando um turista chinês que viajava no comboio optou por não ir ao hospital para suturar um dedo e ficar a tirar fotografias sem parar ao sucedido. “Deve ter ganhado muito dinheiro com essas fotos, porque foi o primeiro a conseguir o registo do acidente”, conta António Silvestre que durante os trabalhos e face ao esforço físico também se lembra de ter comido duas sandes de presunto na estação, o que provocou “ataques de vómitos a algumas pessoas que por ali se encontravam a assistir aos trabalhos, face à carnificina existente”. Algo menos estranho para os bombeiros obrigados a terem de recuperar energias nos mais diversos cenários.

Mas a tragédia também se fez de episódios felizes como o que foi protagonizado por Francisco Oliveira, hoje com 62 anos, que deixara de ser bombeiro há escassos meses quando a tragédia se deu, mas que não hesitou em ir ao quartel pedir equipamento para ajudar os seus antigos colegas. O soldado da paz resgatou com vida um bebé descoberto nos escombros. A mãe também sobrevivera.

“Ouvi um choro de uma criança, que estava debaixo do banco. Fiquei sem pinga de sangue. Imediatamente apareceu uma senhora, só com um hematoma na testa, a gritar que era o filho dela. Nunca mais soube nada deles até hoje”, refere ao mesmo tempo que recorda emocionado - “Quando vi a criança, e perante tanta emoção, disse-lhe ‘olá bebé, olá bebé’ e por incrível que pareça ele até começou a sorrir”. O antigo bombeiro assistiu também à colisão entre comboios. E neste aspeto António Silvestre acrescenta: “Houve quem visse e começasse a correr só tendo parado quando chegou ao Tejo”.
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Quem também vestiu o fato-macaco na altura, foi o então presidente da junta da Póvoa, Rui Araújo, que fazia parte igualmente do corpo de bombeiros. Quando chegou ao local já os colegas estavam a retirar os sobreviventes e os mortos “metidos naquela espécie de latas de alumínio tal era o estado em que as composições tinham ficado”. Como autarca uma das preocupações que teve na altura prendia-se com a possibilidade de existir um grande número de vítimas da freguesia, e como o cemitério local já estava sobrelotado, “certamente que muitas teriam de ser sepultadas em freguesias vizinhas, o que dado o impacto social da tragédia nas famílias, poderia representar um trauma acrescido”, até porque o cemitério novo na Quinta da Piedade, só apareceu mais tarde.
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Presidente da junta, à época, também participou no socorro
 Imagem Francisco Oliveira salvou um bebé
A meio da tarde daquele dia trágico, chegou ao local o presidente da República Mário Soares que fez questão de ver os corpos. “Arrepio-me só de me lembrar do caso de uma senhora em que se via mais de um metro do intestino de fora. Foi algo que impressionou bastante o presidente, que não conseguiu evitar as lágrimas”, refere Francisco Oliveira.

Muitos bombeiros trabalharam sem parar durante várias horas. O comandante lembra que só ao fim do dia é que se conseguiu desimpedir a linha e que um dos grandes problemas consistiu na falta de material. A chegada de duas gruas foi essencial, contudo uma delas não tinha a resistência pretendida e isso levou a que as operações demorassem mais tempo do que o desejado. “Não havia material de desencarceramento, pelo que após o acontecimento a CP ofereceu aos bombeiros esses instrumentos”, acrescenta António Silvestre.
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Importante, na altura, foi a colaboração de algumas empresas que se situavam nas imediações como a Solvay. Para além de ceder trabalhadores e alguma maquinaria que ajudou a desencarcerar os corpos, a Solvay abriu ainda um corredor para o socorro das vítimas. Afonso Rita explica que a única saída para as ambulâncias do quartel era a passagem de nível situada mesmo à frente da antiga sede dos bombeiros. Mas como o acidente obstruiu a passagem, a única solução foi usar o interior daquela fábrica para evacuar os feridos para os hospitais.
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Ainda assim, o comandante refere que havia sempre a hipótese de o socorro ser feito do outro lado da linha, ou seja do lado da cidade, mas neste caso seria mais difícil, pois já eram muitos os carros particulares que tinham “entupido” algumas das ruas de acesso à estação. Contudo, “os bombeiros estiveram sempre focados no seu trabalho, e os populares que apareceram na estação para assistirem às operações ou à procura de familiares mantiveram sempre a distância das composições acidentadas”. “Tudo funcionou quase na perfeição, isto para um acidente que ocorreu numa época em que não havia planos de Proteção Civil, INEM ou Autoridade Nacional.”, enfatiza. “Tivemos uma missão muito dura e trabalhosa”, faz também questão de frisar António Silvestre.
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Valeu aqui a interajuda das corporações vizinhas e até da Cruz Vermelha que se ocupou das vítimas mortais, que aguardavam para serem enviadas para o Instituto de Medicina Legal. “Retirámos o último corpo que estava entre a traseira e a frente dos comboios às nove e tal da noite”, lembra Silvestre. Nessa noite quando foi para casa, lembra-se que a sua  filha disse para ir tomar banho “porque só cheirava a mortos”.

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Muitas ambulâncias e populares no local
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Um acidente traumatizante para o concelho

Daniel Branco era o presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira no ano em que se deu o acidente. Ao Valor Local, o autarca comunista agora a exercer funções na Câmara de Oeiras, lembra que foram tempos difíceis e viveu mesmo alguns percalços até chegar ao acidente. O antigo autarca recorda-se que não tinha motorista e que até chegou a ser “barrado” pelas autoridades, tendo de se identificar.

Daniel Branco não esteve nas primeiras horas do acidente, até porque não se encontrava no concelho à hora em que tudo aconteceu. “Quando cheguei já não vi as famílias, ou as vitimas. As ambulâncias já se tinham retirado. Mas recordo-me bem que os dispositivos que estavam à disposição das forças de segurança e dos bombeiros, em suma da proteção civil eram muito diminutos”, salienta o antigo autarca.
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Como presidente da Câmara na altura, Daniel Branco, ouviu lamentos e queixas por parte dos operacionais. A falta de material de desencarceramento pesado que fizesse face às necessidades dos bombeiros na altura era uma constante.

O antigo autarca reconhece que este acidente foi traumatizante. Daniel Branco vinca que tal teve um impacto social negativo “dada a sua grande envergadura com reflexos complicados em muitas famílias” Por outro lado o antigo autarca refere que o mesmo serviu “para que bombeiros, proteção civil e o INEM, inexistente à data, acumulassem experiência” sendo que tal “foi importante em anos futuros para a Proteção Civil”.

Após o acidente da Póvoa, a Câmara de Vila Franca de Xira fez sentir a sua voz face ao facto de a CP primar pela falta de diálogo e de informação. Foi constituída uma comissão de inquérito interna, que ia dando pouco eco do que andava a fazer no terreno.

Nas atas das reuniões de Câmara e de assembleia municipal encontra-se patente o embaraço que os autarcas sentiam com o silêncio da empresa, acusando-a de irresponsabilidade. A autarquia começou desde logo a reclamar em conjunto com a população a quadruplicação da linha, que acabou por ser executada mais tarde. Outras questões num concelho que se apresentava pouco desenvolvido, à imagem do país de então, começaram a ser focadas como a necessidade de Alverca dispor de 12º ano, dado o número de jovens que morreram no acidente e que iam para a escola de Chelas- Olivais, mas também a necessidade de um terminal de via-férrea para transvias de curto trajeto foi lembrada.



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Sindicato dos Maquinistas imputa responsabilidades à CP

Passados 30 anos, o Sindicato Nacional dos Maquinistas dos Caminhos de Ferro Portugueses (SMAQ) não tem dúvidas, ao fazer a retrospetiva do acontecimento, que o que aconteceu naquele dia foi algo que resultou da falta de investimento da CP na linha férrea. As preocupações com a segurança e a adaptação ao que já era prática nesta matéria no estrangeiro não eram, segundo António Medeiros daquele sindicato, questões que afligissem a CP. Na altura, a notícia posta a correr definia que na origem da desgraça tinha estado um erro humano. Quando o caso chegou a tribunal, poucos anos depois, a culpa não deixou de tombar para o maquinista João Farinha, entretanto falecido. Sobreviveu ao acidente bem como o colega que estava com ele na cabine.  A empresa também ficou com a culpa, mas com repercussões menores.

Contudo, e sempre que havia catástrofes que implicassem acidentes de comboio, “a CP tinha como princípio inacreditável atribuir esses casos a falha humana”, para disfarçar “o enorme défice de investimento nas linhas (completamente sobrecarregadas de tráfego) e na segurança”. “Felizmente, hoje estamos num patamar completamente diferente. Uma falha de sinalização como aconteceu naquele dia, (em que o penúltimo sinal antes de chegar à estação se apresentava verde quando devia estar laranja, e o último já estava vermelho), não originava automaticamente um acidente, atualmente, porque há meios complementares que ajudam à ação do maquinista quando se dá uma contradição no sinal”, atesta António Medeiros. O comando automático da velocidade hoje é uma realidade nas linhas e tornou os acidentes quase inexistentes. Na altura, o freio a vácuo era o instrumento que se usava e provava ser mais ineficaz. “Os maquinistas tinham de usar a intuição para evitar os acidentes”.

No caso de João Farinha, “sofreu na pele todas as repercussões possíveis”. “Foi punido, e despedido”. O Tribunal decretou-lhe pena suspensa. O processo arrastou-se durante vários anos, e a decisão judicial só chegou nos anos 90.  O sindicato deu-lhe algum apoio. "Ficou para sempre afetado pelo acidente, desde a sua vida profissional até pessoal, devido à tragédia em si, mas também tendo em conta a atuação da CP”. Com o evoluir dos anos, “aumentou-se muito o investimento na segurança e nas comunicações com um canal sempre aberto para com o maquinista. O comboio consegue parar em qualquer situação de perigo iminente”, reporta para se referir à realidade atual. Mas em 1986 tudo era diferente, o próprio ministro dos Transportes do então primeiro-ministro Cavaco Silva, Oliveira Martins mostrou, segundo a imprensa nacional à época, a sua impaciência pela falta de investimento da CP, exortando a empresa a passar à prática o que já tinha sido alvo de estudos.

Um jornal à época do acidente da Póvoa, falava em mais de 200 mortos nas linhas férreas só entre 1981 e 1986 resultantes de descarrilamentos, choques com automóveis, e embates entre composições.

Os pais de Rui Benavente e de Maria de Lurdes, o jovem casal de Alhandra que morreu no acidente, recebeu a dada altura um pedido de desculpa por parte do sindicato que nunca foi aceite. “Disse que era impossível perdoar uma coisa daquelas, e pedi para que acabassem de imediato com a conversa”, recorda José Benavente, que se revelou taxativo no seu diálogo com os maquinistas. Joaquim Dias, pai de Lurdes, recorda que no final do caso, a CP “deu indemnizações de 75 euros passados dois anos (o salário mínimo em 1986 rondava os 112 euros por mês). No meu caso, como a minha filha já não tinha mãe quiseram dar-me 13 euros”. Quanto ao pedido de desculpas dos maquinistas, também não compreendeu – “O mal já estava feito, não liguei importância ao facto”.

Ofélia Janeiro refere que preferiu não entrar com processo em tribunal. “A imputação de culpas ao maquinista do rápido, que segundo constou na altura, trazia mais horas de condução do que as aconselhadas, deixou-me um sentimento de injustiça que me levou a não aceitar a conclusão de erro humano nas causas do acidente. O facto de não ter ficado muito ferida ajudou a essa decisão. Mas compreendo quem levou o processo até ao fim: pessoas com a vida destruída, amputados, viúvos, pais que perderam os filhos.”

O Valor Local pediu declarações à CP sobre este acidente. Fonte oficial da empresa refere que “o acidente da Póvoa foi um acontecimento lamentável que marcou  todo o setor ferroviário, pelas suas consequências e perda de vidas humanas.” Quanto ao assacar de responsabilidades e ao facto de a empresa, alegadamente, ter tido como política imputar as culpas a falha humana, a CP defende-se: “Ao longo da história ferroviária, quaisquer acidentes e/ou incidentes, são alvo de estudo detalhado que visa, para além do apuramento das suas causas,  a adoção de medidas de prevenção e correção das falhas detetadas, para impedir que estas situações se repitam. No caso deste acidente, também se aplicou esta abordagem sendo que, à época, estava já em avançado estado de evolução um sistema (denominado CONVEL), que representou um enorme incremento da segurança da circulação ferroviária. Este sistema ainda hoje está operacional e constitui um importante componente do leque alargado de sistemas de sinalização e comunicação que, a bordo dos comboios ou ao longo da infraestrutura ferroviária, asseguram a segurança da circulação.”
 

Nota de Redação: O Valor Local agradece a todos os que de alguma forma contribuíram para a produção desta reportagem com informação documental, e contactos sem os quais esta reportagem não seria possível dado o vasto horizonte temporal do acontecimento da Póvoa.


Comentários

O meu irmao e os meus 2 primos estavao no comboio que estava parado. Um dos meus dois primos, estava na porta e viu como um segundo comboio aproximava ser e so lhe deu tempo a entrar e gritar para avisar. Afortunadamente nao lhes passou nada nem ao meu irmao nem aos meus primos mas lembro-me que em essa carruagem morreram varias pessoas. Ao menos o meu primo conseguiu salvar vidas, avisando da chegada do outro trem arriscando a sua provia vida. Tambem depois do impacto o 2º primo meu, logrou encontrar e salvar um cão que tambem viajava e ser entregue á sua dona. Tantos anos depois, e agova vivendo em espanha, ainda nos lembramos de este tragico accidente e as pessoas que perderam a vida ese dia.

Pedro Lopes
Alicante. Espanha
13/12/2018 06:55

fui uma das vitimas mais graves fiz fratura exposta da tibia e peronio tinha 16 anos sofri muito num ano fui 5 vezes operada a minha perna direita sou eu sei o que ainda sofro tenho muitas dores na perna mas fui horrivel lembro me de tudo morreu ao meu lado minha amiga fui para santa maria com o bebe que sobreviveu alem de tudo dou graças a deus de estar viva

Elisabete Nunes
Sobralinho
seg 04/07/2016 23:36

Estive neste acidente, como Bombeiro, com mais camaradas de Sacavém, em 50 anos de Bombeiro, foi dos maiores acidentes que apanhei, lembro-me bem como encontrá-mos a situação, hourivel, via-se corpos, uns feridos outros sem vida por tudo o que era lado, numa das declarações mencionadas mais acima, 1 senhoras com os entestinos de fora, estava pendurada na parte de fora da carruagem, como se de uma peça de carne no talho se tratasse, foi coberta com 1 cobertor para não estar á vista de toda a gente.
Junto ao quartel dos B.V.P.St.I, existia uma pala no apeadeiro, para as pessoas se recolherem, essa pala foi derrubada pelo comboio, 1 rapaz que estava lá, ficou espalmado parecia uma bolacha, foi 1 dia para esquecer, nós Bombeiros e civis que ajudaram, pareciamos empregados de talho, no final do dia eu e os meus colegas de Sacavém, dirigimo-nos ao Hosp. Stª Maria dar sangue, porque na rádio e televisão pediam ás pessoas para darem sangue para não faltar aos acidentados.
Passados estes anos, tenho na memória como 1 dos mais marcantes.

João Figueiredo
Sacavém
seg 09/05/2016 18:02

Ainda hoje tento não me lembrar desse acidente. Era nova, tinha entrado há pouco tempo para a corporação dos bombeiros da Póvoa de Sta. Iria. Deparei-me com este acidente a qual, por instinto e dever, acorri para ajudar. Ainda choro por aqueles que não mereciam ter tão trágica morte

Cláudia Gomes
Cardosas
sáb 07/05/2016 12:35


Eu assisti ao acidente, estava de folga e fui comprar o jornal ao quiosque que havia junto á passagem de nível, vi o comboio subir para cima do que estava parado, foram imagens que jamais esquecerei, muitos jovens morreram.

António Madeira
Forte da Casa
qui 05/05/2016 11:26

                                                                                       

Eu estava na ultima carruagem da composição que estava parada na estação da Povoa. Fui o ultimo a sair antes do embate. Foi o pior dia da minha vida. 
Paulo Simões
São João da Talha
25/03/2016 às 00:25
                                                                                        

Foi um dia que me marcou, pois viajava nesse transvia com destino a Santa Iria. Ainda me custa recordar o que senti e vi.
Vítor Caçapo
Santa Iria de Azóia
24/03/2016 às 01:28

                                                                                         
Um dia que jamais esquecerei! Estava na estação do lado contrário do acidente, a traseira do comboio, que estava parado para Lisboa, estava quase na minha direção, eu ia para a escola em Alverca, quando vi o rápido, este vinha a apitar e logo comecei a correr mais os meus colegas, quando colidiu ainda estava na estação, foi um estrondo enorme e senti vibração/ondas no ar, pensei que iria morrer, as imagens seguintes nem dão para descrever, foi horrível.
Lurdes Carvalho
Póvoa de Santa Iria
qui 24/03/2016 às 00:17
                                                                                       
                                                                                           
tambem eu que perdi a minha mae e tio em 2010 essa cp. 
Pedro Lopes Silva
Agualva
qui 24/03/2016 00:16

                                                                                            
Sempre difícil este dia...
Estudava na cidade Universitária nessa altura...
Sobrevivi prk,estava de "birra" com duas das minhas melhoras amigas...k morreram nesse mesmo acidente.A elas jamais esquecerei e não me perdoo por estarmos zangadas.Por outro lado...salvaram-me a vida...prk estaria ao lado delas com toda a certeza não fosse o infortúnio de estarmos zangadas...
Ana Baptista
Vila Franca de Xira
qua 23/03/2016 05:15

                                                                                            
Trabalhava na altura nos ctt que ficavam muito próximos da linha férrea. Ouvi um estrondo enorme e os ctt são invadidos por pessoas a querer telefonar , decidimos não encerrar na hora de almoço para que as pessoas o pudessem fazer .tenho esse trágico dia bem presente na minha memoria
Ana Pedro
Póvoa de Santa Iria
ter 22/03/2016 22:31

                                                                                                                                                                                       
Um dos dias mais negros da minha adolescência! Muito ficou por esclarecer!
Luis Faria
Alverca
ter 22/03/2016 20:30
                                                                                           
Eu estava na Escola Gago Coutinho quando soube da noticia e mal acabei as aulas fui com minha mãe à estação da Povoa pois a minha irmã era para ir para Lisboa nesse dia desde Alverca mas acabou por não ir.
Lembro-me de ver pedaços de corpo das vitimas e cheirava muito a mortos.
Helena Garcia
Povoa de Santa Iria
ter 22/03/2016 19:13


                                                                                         
O Rui e a Maria de Lurdes (Milu) eram meus amigos e nunca iam na última carruagem. O destino nesse dia fez com que se atrasassem e fossem a correr para não perder o comboio tendo, por isso, entrado na última porta em Alhandra. Nunca me hei de esquecer deste acidente e dos meus amigos! Há 32 anos que ando de comboio e nunca mais viajei na última carruagem.
Cristina Cardoso
Alhandra
ter 22/03/2016 17:49
                                                                                         
                                                                                          
Gostei do artigo, embora me traga memorias difíceis. Estava na plataforma para apanhar o comboio para a escola de Alverca com colegas e assisti a tudo. Perdi alguns amigos e alguns conhecidos. Desejo a todos os que perderam os seus entes queridos uma enorme força sabendo que nunca serão esquecidos.
Carlos Amado
Arruda dos Vinhos
ter 22/03/2016 14:32
           
                                                                                          
eu assisti a esta acidente era das poucas pessoas no local naquele momento, estava de folga e fui comprar o jornal ao quiosque que havia na época junto da passagem de nível e vi o comboio subir pela traseira do outro que estava parado na estação, foram momentos terríveis de dor e impotência, nunca mais me esqueço daquelas imagens.
António Madeira
Forte da Casa
ter 22/03/2016 14:14
                                                                                          
com respeito a este acidente, monstruoso, em que muita gente perdeu a vida , e outros ficaram feridos, com sequelas graves, o que mais me espantou , logo a seguir , a CP levantou um inquérito ao maquinista, logo se levantaram as vozes dos outros maquinistas contra o inquérito , e iriam parar se o tal andasse para a frente, até hoje como todos os inquéritos feitos por estas entidades ficamos sem saber, o resultado, será que a CP andou e continua a esconder falhas graves da sua parte, alguém, que responda, antes deste tinha havido outro que nem a CP conseguiu saber o numaros de mortes , ALCAFACHE. 
Victor Dinis
Póvoa de Santa Iria
ter 22-03-2016 12:18

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