Covid-19 deixou sequelas para quem passou pela doença Antigos doentes queixam-se de dificuldades respiratórias, perdas de memória e cansaço Sílvia Agostinho 12-07-2021 12:02
Foi uma das trabalhadoras que ficou infetada no decurso do surto de Covid-19 que se espalhou entre 129 pessoas que trabalham na empresa Avipronto em Azambuja. Vera Fonseca deu uma primeira entrevista ao nosso jornal em agosto do ano passado, onde fazia referência aos 11 testes que teve de fazer até dar negativo. Tem 40 anos e passou muitas semanas em casa, onde lhe valeu o apoio da família e dos amigos. O marido também teve covid e nunca mais recuperou o olfacto e o paladar. Apenas sente o gosto de comida picante e pouco mais. Já Vera Fonseca queixa-se de um cansaço que não era habitual antes da doença. É com espírito positivo que diz enfrentar a vida depois da doença. Trabalhadora da linha no abate na Avipronto diz que não é hábito os colegas falarem muito do que se passou. Estigma ou não compara: “É como falar de sexo em público” numa espécie de tabu não declarado, refere. Mais de um ano depois contabiliza que, nesta altura, já vai em mais de 20 testes, isto porque a empresa passou a fazê-los regularmente. Recorde-se que esta indústria foi acusada de alguma negligência no processo que terminou na descoberta de 129 casos de Covid-19. Vera Fonseca recorda que esteve em contacto com outras pessoas que também deram positivo à posteriori mas no seu caso não voltou a contrair a doença. Também já tomou a vacina, apenas uma dose conforme é recomendado para os que já tiveram a doença. É com algum humor que diz que já tem um curso em testes.
Vera Fonseca tenta recuperar o pleno das suas capacidades embora o processo esteja a ser lento
Vera Fonseca encontra-se atualmente a frequentar consulta no seguimento de ter ficado infetada com Covid-19 e com sintomas associados. A energia já não é a mesma de antes, e como trabalhadora no turno noturno, acaba por arranjar forças à custa de muitos cafés, “mas às vezes nem isso chega”. “Há que aguentar e quando chego a casa vou dormir de imediato”. A sensação de desgaste físico dura até hoje. Durante o horário de trabalho “as primeiras duas a três horas levam-se bem, mas a partir daí o cansaço vai-se instalando”, algo que não acontecia antes até porque diz que sempre se considerou como uma pessoa “muito enérgica apesar de gordinha”. Trabalhar ao ritmo da linha não dá para abrandar, “e mesmo cansada há que manter aquela velocidade”. Praticante de artes marciais, Vera Fonseca diz que já não consegue manter o mesmo ritmo. O corpo “não aguenta quer a nível respiratório quer muscular”. Correr ou praticar desporto mais intenso deixou de ser possível, “porque segundo a minha alergologista corria o risco de colapsar” dada a condição física existente. Teve de abrandar a esse nível no que respeita ao desporto. Passados uns meses de ter negativado ao coronavírus, piorou o seu quadro de asma. Refere que apenas no inverno esses sintomas se tornaram mais evidentes. “Sou asmática desde sempre, mas quando antes conseguia intervalar mais a medicação nesta altura não passo sem ela, e mesmo a tomar remédios o fôlego vai-se”, conta, embora esteja a notar algumas melhoras. A nova realidade apoderou-se da forma como tem levado o seu dia-a-dia e não deixa de acentuar que se sentiu um pouco desmotivada. O pensamento inevitável é o de muitos que estão a passar pelo mesmo nos quatro cantos do mundo – “Bolas será que vou ficar assim para sempre!”. Nesta altura, a esperança fala mais alto – “Quero acreditar que isto não vai ser para o resto da vida, que eu possa recuperar e voltar ao que era antes”. A médica alergologista diz que “há que dar tempo ao tempo porque ainda há muito pouca informação sobre a doença no pós Covid”.
Por outro lado, e sentindo-se mais cansada, refere que embora não possa dizer que tenha ficado com sequelas neurológicas, admite que a capacidade de raciocínio já não é a de antes. “Parece que quando me pedem uma resposta a algo mais depressa fico ali um pouco a patinar ou se por exemplo estou a assistir a uma palestra acabo por me dispersar e isso não acontecia antes”, descreve.
Em agosto, Vera Fonseca contava à nossa reportagem que um dos filhos também contraíra a doença, mas não ficou com sequelas, já o marido apenas recuperou “um bocadinho do paladar”. Já consegue sentir o gosto de algumas comidas mais intensas. Já o quadro de anosmia (ausência de olfacto) vai permanecendo. Não consegue sentir os cheiros mais suaves. Apenas um outro odor como o da lixívia, mas antes nem isso. De toda esta experiência Vera Fonseca tenta encarar o que passou de forma otimista, mas refere que a entristece a forma como muita gente ainda olha para a doença como se não fosse nada de especial, e “muitos até como uma fraude” ou “uma manipulação laboratorial”. “São pessoas que vivem aquém da realidade porque possivelmente não tiveram pessoas da família ou amigos a passar pela Covid e não conseguem colocar-se no lugar do outro”.
Silvino Lúcio chegou a estar a contas com o cancro e a Covid- “Rebentou tudo ao mesmo tempo e temi pelo futuro da minha família”
O caso de Silvino Lúcio (foto abaixo) é já do conhecimento público. O vice-presidente da Câmara de Azambuja enfrentou de uma só vez um cancro nas cordas vocais que debelou, entretanto, e na mesma altura em que se preparava para iniciar a quimioterapia contraiu o vírus. Fez um teste e apesar de não sentir sintomas deu positivo. “Não tinha febre, nem dores no corpo”, recorda-se. No dia do teste, “percebi logo que a coisa não estava boa porque o enfermeiro e o médico andavam a conversar entre eles e a olhar para mim e lá me disseram que estava positivo”. Como muitas outras pessoas não faz ideia como apanhou a doença. “Sou um homem de rua, mas sempre com muitos cuidados e a tentar fazer com que os outros fizessem o mesmo, lavar as mãos e usar máscara”. Já em casa, diz que instalou o quarto no rés do chão. O tratamento ao cancro ficou adiado por uns tempos. A esposa também ficou infetada, e perdeu o paladar que não recuperou até ao hoje desde que teve, há seis meses, a doença. A neta também deu positivo mas o filho não, “o que não deixa de se estranho porque moramos juntos”. Silvino Lúcio diz que não passou com muitas dificuldades o período da doença, ao contrário da esposa que “sofreu muito com falta de ar”. Nesta altura já tomaram a vacina da Pfizer.
O episódio psicótico que sofreu em janeiro passado resulta da “combinação da doença, e da depressão que sofreu em resultado do cancro”, acredita. Recorde-se que o autarca sentiu-se mal numa zona ao ar livre, no campo de futebol local, em Aveiras de Baixo e sofreu um episódio de hipotermia fruto das condições climatéricas que se sentiam naquele início do mês de janeiro. Andou durante várias horas a pé entre Azambuja e a sua casa em Aveiras. “Rebentou tudo ao mesmo tempo. O facto de a minha família ter passado por isto tudo também mexeu cá dentro”. Este tipo de acontecimentos no pós-covid não é completamente invulgar. Já está provado que podem suceder em pessoas sem qualquer tipo de histórico psiquiátrico. Silvino Lúcio esteve internado na ala psiquiátrica do Hospital de Vila Franca durante um mês, mas diz-se sentir motivado para os desafios do futuro, nomeadamente, a sua candidatura à Câmara. Silvino Lúcio está a ser acompanhado atualmente a nível psiquiátrico e psicológico. “Essas consultas têm-me dado ânimo e orientação”. Não esconde que está diferente. Muitos notam-lhe alguma apatia e que já não é o mesmo Silvino de antigamente, mas diz que não. É apenas fruto da experiência que viveu e que optou por ter uma postura mais calma. O que “não quer dizer que às vezes não me passe da cabeça”. “Era um homem muito reativo às coisas, mas hoje estou muito mais consciente e o que passei a nível do cancro e da Covid fez-me pensar muito na vida. Quando estava em isolamento e sozinho naqueles dias antes de ter dado negativo “deu para refletir sobre muitas coisas, porque quando a trave -mestra de uma casa cai a família também sente esse desmoronamento”. Passados estes meses conclui que aquilo que passou, “deu para pensar no que queremos fazer e que caminho queremos percorrer”. Sendo que “profissionalmente e se for eleito quero fazer este mandato, e quem sabe depois outro se voltar a candidatar-me daqui a quatro anos.”
Algumas perdas de memórias passaram a fazer parte do seu dia a dia
Luís Simão confessa que levou um abanão com a doença Voluntário nos Bombeiros de Vila Franca de Xira, Luís Simão teve Covid-19 em janeiro, e foi o que se pode dizer vítima da terceira vaga, a mais severa até hoje no nosso país quando no início do ano havia milhares de infetados por dia e centenas de pessoas a morrer também a um ritmo vertiginoso diariamente. Passados seis meses, Luís Simão recorda à nossa reportagem que entre os sintomas que teve um dos que o deitou “mais abaixo” foi “o desarranjo intestinal” que a doença causou. Ao nosso jornal em janeiro dava conta de dores respiratórias como se os pulmões quisessem rebentar. Perdeu o cheiro e o paladar mas recuperou entretanto. Luís Simão recorda que até ao terceiro ou quarto dias os sintomas eram ligeiros, algumas dores no corpo e constipação, mas a partir dessa altura “foi o descalabro total” e teve de recorrer ao Hospital de Vila Franca de Xira. Fez dois testes até dar negativo a 25 de janeiro. Seguiu-se um período ainda longo em casa até se sentir apto para ir trabalhar porque o cansaço físico também se apoderou de si, e ainda hoje sente o mesmo com sequelas desse período. Perdeu peso com a doença e diz que foi “uma coisa boa” não os ter recuperado, mas em contrapartida sente-se mais cansado a fazer esforços do que antes quando pesava mais quilos. Subir escadas é disso um exemplo. “Parecendo que não a gente leva um abanão com isto tudo”. Está a ser acompanhado por pneumologista atualmente. Ainda não foi vacinado porque tem de esperar seis meses desde que deu negativo, mas espera que seja em breve. Revela que aumentou os cuidados quanto à doença. Tal como Vera Fonseca, Luís Simão também acha que a sua capacidade de raciocínio piorou, e sente que se esquece mais facilmente das coisas. “Se me disserem alguma coisa e se for relacionado com números, esqueço-me com facilidade e isso não acontecia antes”.
Hospital de Santarém com consulta pós covid: Sequelas neurológicas são das mais preocupantes O Hospital De Santarém criou a consulta “Onde Day Clinic” destinada a doentes que tiveram Covid-19 para avaliação do seu estado de saúde em que após a mesma podem ser direcionados para as diferentes especialidades como a neurologia e a pneumologia, tendo em conta que a maioria das sequelas dos doentes covid estão relacionadas com aquelas áreas. O Valor Local contactou ainda o outro hospital da nossa área de influência, o de Vila Franca de Xira, para aferir do acompanhamento após a doença aos utentes da unidade, mas dadas as alterações internas com a passagem a entidade pública empresarial não foi possível o agendamento da nossa reportagem junto de quem de direito.
Elegíveis para esta consulta na unidade escalabitana, que começou em abril, estavam 57 pessoas que passaram pelos cuidados intensivos, 250 profissionais de saúde, e cerca de 500 a 600 doentes que estiveram internados num total de 1000. O objetivo da consulta não passa apenas por perceber as necessidades imediatas, mas também aquelas “sequelas que não conhecemos a médio-longo prazo”, refere Paulo Sintra, diretor clínico do Hospital de Santarém, que até dá o exemplo de um colega seu que desde que teve covid nunca mais se sentiu bem – “Tem falhas de memória, e não se consegue concentrar. Quer vir trabalhar connosco, mas pediu dois meses para começar porque percebe que não está bem, e estamos a falar de uma pessoa com 30 e poucos anos”. O sistema neurológico é dos que mais acusa a passagem do vírus pelo corpo humano, e isso mesmo pudemos constatar nos testemunhos que aqui apresentamos neste trabalho.
Para Paulo Sintra (foto acima) as implicações neurológicas ainda estão mal estudadas dada a precocidade em todo este quadro, pois apenas agora se começa a perceber que tipo de consequências a doença está a trazer para milhões de pessoas em todo o mundo. “Tudo isto preocupa-nos imenso, porque temos muita gente que esteve infetada, fez quarentena em suas casas, passou mais ou menos bem a doença, mas descobre-se agora que existem sintomas de alguma coisa que nem se percebe muito bem o que é, e que por isso tende-se a desvalorizar este tipo de sintomas”. Paulo Sintra vai mais longe – “Se eu tenho uma pessoa que é médica que tem dificuldade em perceber o que está a acontecer consigo, imagine o cidadão comum que ainda por cima é pródigo em arranjar desculpas para tudo e mais alguma coisa para não ir ao médico”.
Nos dias de hoje assiste-se a uma profusão de publicações académicas sobre a Covid-19, mas “a maioria é lixo”, ilustra o diretor clínico para dar a entender que neste domínio como noutros do pós doença há ainda muito por explorar, até porque “trabalho sério, pesado com metaanálises é cedo ainda”, principalmente “a este nível das sequelas e das complicações neurológicas muito mais do que aquelas que são a nível respiratório ou cardíaco que por serem orgânicas são mais fáceis de descrever ou de aferir”. Nesta vertente estão, ainda, a ser associados casos da doença ao surgimento de episódios de demência, “e isso ainda está pouco estudado, apesar de alguns bons estudos”. Como sabemos “a doença ataca os pequenos vasos, e possivelmente no nosso cérebro essa parte da estrutura não conseguiu ter capacidade de resposta, o que implica alguma perda de funções superiores”. Este tipo de incidência está-se a verificar em indivíduos entre os 50 e os 60 anos, o que não é normal naquelas idades. Todos os doentes que passam pelo internamento neste hospital são convidados a vir a esta consulta, mas a unidade também recebe os que são encaminhados pelos cuidados de saúde primários dos concelhos servidos por este estabelecimento hospitalar, mas que estiveram sempre em suas casas durante a doença. A maioria dos que vão a esta consulta ficaram com sequelas pulmonares, cansam-se após pequenos esforços, e têm dificuldades em respirar. O objetivo é “sistematizar uma abordagem a uma patologia que é relativamente nova e acerca da qual ainda temos muitas dúvidas”. A especialidade de Medicina Interna neste hospital vê os doentes e encaminha-os para as demais especialidades. Nomeadamente, e têm sido os casos da pneumologia, cardiologia, fisioterapia e neurologia. “Felizmente a grande maioria das pessoas não ficou com sequelas da doença, mas alguns vão cair na ‘malha’. Pedimos exames e fazemos esse encaminhamento, mas com uma abordagem globalizante do doente para percebermos como otimizar o seu tratamento”. Até ao final do ano, o Hospital de Santarém espera poder tirar as primeiras conclusões deste trabalho. Daquilo que lhe é dado a perceber muitos pacientes com problemas a nível orgânico e cardíaco “ficaram com uma reserva funcional baixa com perda de qualidade de vida”. Recuperar ou não ainda é cedo para aferir. Neste aspeto a fisiatria e a fisioterapia serão importantes com alguns contributos no que respeita às sequelas musculares. O hospital coloca ainda ao serviço das pessoas uma consulta de psicologia. “É importante porque o estigma vai deixar de ser o receio do contágio para infelizmente passar a ser o do indivíduo que teve Covid e que nunca mais voltou a ser o mesmo, que está diminuído”. Estende-se esta consulta ainda às crianças e aos jovens que também têm sido vítimas desta pandemia a vários níveis.
À semelhança do que está a acontecer em outras unidades de saúde da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, o hospital de Santarém também regista um aumento de casos positivos, nas últimas semanas, e também de mais pessoas internadas, três em cuidados intensivos, no dia da nossa reportagem.
Já quanto à consulta “One Day Clinic” está a ter uma boa adesão, mas os desafios impostos pela pandemia não acabam. Paulo Sintra, diretor clínico, dá a conhecer que já há vários casos até nesta unidade, entre profissionais de saúde, de infeções mesmo após a segunda toma da vacina, e decorrido o tempo necessário para a imunidade.
Durante a segunda e terceira vagas da doença, o desafio imposto pelo crescente número de doentes internados exigiu uma capacidade dos serviços daquele hospital “nunca vista”, recorda o diretor clínico. “A biologia viral do Sars-cov-2 adapta-se muito bem às condições adversas com uma capacidade de se mutar incrível e num serviço de saúde em que andamos sempre a correr atrás do prejuízo. Não sei como isto não descambou tudo”, diz Paulo Sintra e prossegue – “Neste hospital temos seis camas de cuidados intensivos, mas chegámos a ter 23 exatamente na mesma estrutura e isto é de loucos. É como conduzir um Fiat 500 que não passa dos 60 quilómetros hora, e de repente a malta quer e consegue que aquilo atinja os 180 quilómetros hora e não explode”. Por isso mesmo “a experiência foi desgastante, mas enriquecedora, a tomar decisões de meia em meia hora, a montar e a desmontar serviços consecutivamente”. Este vírus veio para ficar à semelhança do influenza pois tem uma capacidade de mudar o seu ADN muito grande ao contrário por exemplo do “da varíola ou da poliomielite que tem um patógeno que não mutou, e que por isso são doenças erradicadas ou quase”.
Na ala da fisioterapia, encontramos alguns doentes que tiveram Covid-19 e que necessitam deste estímulo para recuperarem do ponto de vista respiratório e muscular. Maria Madalena Carvalho, tem 72 anos, de Alpiarça, um dos concelhos servidos pelo hospital e teve Covid-19 em fevereiro. Foi internada nos cuidados intensivos, e confessa que esteve “muito mal”. Faz exercícios musculares. Sente mais cansaço do que antes. Desde março que vem a esta fisioterapia e diz que está a sentir melhoras.
Fernando Pintassilgo, 42 anos, é de Santarém e ficou também com sequelas da doença embora nunca chegasse a estar internado. Já fez exames aos pulmões porque sente dificuldades respiratórias. Gestor comercial e viticultor, refere que frequenta a fisioterapia duas vezes por semana “Sinto-me mais cansado, mas espero recuperar”.
Presidente de Câmara de um concelho com um pequeno número de habitantes, quando ficou doente com Covid-19 e com um executivo de três pessoas, em que uma delas também contraiu o coronavírus, deitou as mãos à cabeça
Utente da consulta pós covid, é autarca e defendeu a vacinação dos presidentes de Câmara como prioritária
Deu que falar quando assinou um artigo de opinião no jornal “Expresso” a defender que os autarcas deveriam ter prioridade na vacinação. Estávamos em janeiro quando os idosos e os funcionários dos lares tinham começado a ser vacinados, e longe ainda da vacina chegar ao grosso da população. A opinião polémica surgiu da sua própria experiência. Presidente de Câmara de um concelho com um pequeno número de habitantes, quando ficou doente com Covid-19 e com um executivo de três pessoas, em que uma delas também contraiu o coronavírus, deitou as mãos à cabeça. Miguel Borges é um dos pacientes do hospital de Santarém nesta consulta pós covid.
Foi em novembro que ficou doente. Os filhos e a mulher também deram positivo, mas foi este autarca do distrito de Santarém que ficou em pior estado. No início “a coisa parecia que não ia além de uma gripe, mas em pouco tempo o meu quadro agravou-se com muitas dores no corpo e muita febre”. Perdeu também o paladar. Foi internado no hospital de Abrantes durante 19 dias. Disseram-lhe que já levava pouco pulmão para respirar. Sobretudo Miguel Borges lembra que a diferença entre “não estar assim tão mal quanto isso e de repente estar numa situação já muito delicada entre a vida e a morte é muito pequena e assustadora”. Normalmente este quadro chama-se de hipoxia alegre quando o doente não se apercebe que os níveis de oxigénio estão no mínimo. “Tive mesmo essa sensação artificial de bem-estar quando não era nada disso”, assegura.
Miguel Borges diz que sempre confiou nos médicos e que nunca teve medo durante o tempo em que esteve internado. “Não tive noção do perigo e da gravidade, sempre com a sensação de esperança no futuro apesar de todas as incidências”. Ainda chegou a cair com alguma gravidade na casa de banho do hospital “com dores descomunais”. Esteve para sair numa das alturas, mas teve de ficar dada a gravidade do seu caso. Valeu-lhe também os períodos em que conversava com colegas de quarto, embora algumas dessas pessoas não tivessem resistido. “Houve momentos giros e já depois de sair entrei em contacto com esses colegas em que tentávamos ter alguns momentos de boa disposição, quando já estávamos melhor. Nunca imaginei que alguém internado num hospital me dissesse que ia ter saudades minhas como foi o caso desse colega, o senhor João, com quem já combinei encontrar-me”. No meio de tanta dor “esta solidariedade” marcou também a passagem de Miguel Borges pela doença. Dos médicos também só tem a dizer bem.
Todos os cuidados do mundo não foram suficientes para evitar a doença, “mas as coisas acontecem”. Saiu do hospital no início de dezembro, mas só voltou ao seu trabalho na Câmara do Sardoal um mês depois.
Quanto às sequelas com que ficou elege o cansaço como a principal e como tal está a ser acompanhado no hospital distrital. Já fez vários exames e vai continuar a fazê-los. Mesmo a falar cansa-se com facilidade. No início sentia mais problemas relacionados com dificuldades de visão, mas nesta altura já não. Sobre o seu artigo de opinião esclarece que nunca defendeu que os profissionais de saúde não fossem prioritários, mas “como é que se governa uma Câmara numa situação como aquela que vivi”. “Obviamente que não defendo que se vacine toda a gente do Governo ou de uma Câmara, mas escolher-se um mínimo de pessoas para que uma autarquia não fique sem ser governada”.