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Crónica Joaquim Ramos: Honda 360

"Aquele carro era tudo para mim. Vinha de manhã para Lisboa, para as aulas, e tinha toda a parafernália de sebentas, livros de estudo, folhas, no minúsculo porta bagagens do Honda que, para além de carro e arquivo, era também mesa de trabalho"
04-09-2018 às 11:42
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Nunca tive nenhum carro roubado ou “desaparecido”. Sorte a minha, talvez. Não é que eu não seja uma pessoa com todas as características para ser assaltado ou espoliado de qualquer coisa que me pertence: sou distraído, bem intencionado nas relações que estabeleço e mantenho, um optimista nato que nunca pensa, quando deixa o carro estacionado em qualquer esquina de Lisboa ou baldio das Virtudes, que pode, ao regressar, encontrar apenas o sítio vazio. Mas ser roubado não fez, até agora, parte do meu código genético.

Nunca me lembro, também, de os meus pais terem sido assaltados ou que os carros modestos que sempre foram tendo atraíssem qualquer traficante de peças. É bem verdade que a minha mãe se roía de inveja duma irmã que parece ter catalisado nela todas as atenções de vigaristas e ladrões: já foi assaltada para cima de uma dúzia de vezes – em casa, na rua, a correr na Mata do Jamor – e a minha mãe…nada! Não tinha nenhuma história de assalto para contar à plateia, enquanto a minha tia, semana sim, semana não, era arrastada na Rua do Carmo, arrancavam-lhe a mala numa rua de Oeiras, onde vive, entravam-lhe pela janela da marquise, levavam-lhe o carro do parque de estacionamento.

Mas a verdade é que, num período da minha vida, tive a sensação, por diversas vezes, que me tinham abarbatado o carro, o primeiro carro que eu tive.

Era um Honda 360 cor de laranja – nos princípios dos anos setenta ainda não havia conotações políticas das cores – que eu tinha comprado, novinho em folha, com um empréstimo do meu pai. Custou na altura quarenta e oito contos (para os mais novos, duzentos e quarenta euros…) e paguei-o, escudo por escudo, ao meu “banco” familiar. Alombei, durante umas férias grandes, com latas ferventes de calda de tomate nos armazéns da Sugal e o primeiro quarto da dívida foi saldado com o suor das minhas costas. Para pagar o restante – e outros gastos também – eu, que frequentava então o terceiro ano de Económicas, consegui um emprego a dar aulas de Matemática e Geografia para adultos, em período nocturno, num colégio situado para os lados do Largo do Rato.

Aquele carro era tudo para mim. Vinha de manhã para Lisboa, para as aulas, e tinha toda a parafernália de sebentas, livros de estudo, folhas, no minúsculo porta bagagens do Honda que, para além de carro e arquivo, era também mesa de trabalho. Como eu tinha que ficar de tarde em Lisboa, por causa das aulas nocturnas, mandei fazer uma tábua à laia de tampo de secretária. Sentava-me no banco de trás do Honda, punha a tábua nos joelhos e ali “marrava” em livros e sebentas, fazia os meus trabalhos, recebia amigos e colegas e preparava as aulas que daria à noite. Naturalmente que, tendo eu vinte anos, a utilidade da carripana foi para além do descrito, mas isso são outras histórias…
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Imagem meramente ilustrativa
Ao fim da tarde, comia qualquer coisa na cantina de Económicas e lá ia eu, Rua de S. Bento acima, até ao Rato. Parava o carro em qualquer buraco que me aparecesse nas imediações, o que por vezes demorava uma eternidade – embora nesse tempo ainda não houvesse EMEL, Lisboa já era um inferno em termos de estacionamento.

Quando as minhas aulas terminavam, voltava ao lugar onde supostamente tinha estacionado mas, do Honda cor de laranja, nem sinal. Se eu me dirigia ao princípio da Rua do Salitre, onde me parecia tê-lo deixado, tinha que correr a rua de cima a baixo e ele aparecia-me a meio. Se pensava que o tinha deixado num recanto da Alexandre Herculano, ele aparecia-me estacionado no princípio da Escola Politécnica. Que diabo, eu sempre fui distraído, mas demasiado jovem para ter Alzheimer. Aquilo começou a cheirar-me a coisa a mais. Parecia que o raio do Honda tinha ganhado vida própria e andava a brincar às escondidas comigo. Mas como na maior parte dos dias ia ter direitinho onde julgava tê-lo deixado e ele lá estava, quieto e cor de laranja, atribuí aqueles desencontros esporádicos à minha distração. Como eu às vezes, apertado com o horário, o deixava estacionado um bocadinho fora das regras – segunda fila, rodado em cima do passeio e coisas assim -, deixava sempre no tablier, bem visível, um cartão com o número de telefone do Colégio.

Até que um dia o mistério foi resolvido. Estava eu a dar uma aula de matemática e ia a meio dum exercício no quadro, cheio de xises e ípsilones, envolto numa nuvem de pó de giz, quando a porta da sala se entreabriu, com o funcionário da secretaria a tentar  chamar a minha atenção, com sinalefas e pssst, pssst!

Saí da sala. “Professor, o seu Honda está na Avenida da República. Foi a Polícia que telefonou para cá a dizer”. “Pode lá ser”- espantei-me eu – “ tenho a certeza que aí não o deixei!”. “Mas está” – insistia o homem – “pelo menos é o que a Polícia diz. E pior, está estampado e com a frente toda deitada abaixo!”. “ Não pode ser, é engano, eu tenho a chave na sala de professores, no bolso do meu casaco, e o carro não anda por ele próprio nem sem chave…” protestava eu, já a desconfiar de que o mafarrico cor de laranja tinha poderes mágicos de autolocomoção.

Esclareceu-se então o mistério. Não só o da Avenida da República mas todos os restantes episódios de desencontros entre mim e o Honda. É que o rapaz do refeitório, doido por carros e tudo quanto fosse mecânico, apercebeu-se da minha distração e da minha rotina. De vez em quando, esperava que eu entrasse para a aula de cinquenta minutos, ia-me ao bolso do casaco buscar a chave e dava umas voltinhas por Lisboa no Honda, cronometradas para trinta ou quarenta minutos. Algumas vezes já estava ocupado o lugar de estacionamento onde o carro parqueara e ele tinha que o arrumar noutro local. Estavam explicadas aqueles desencontros entre mim e o meu Honda cor de laranja. Só que nessa noite a coisa não correu bem e ele espetou-se com o Honda num marco de correio da Avenida da República!

A coisa terminou em bem. O rapaz pagou o arranjo e eu não fiz queixa à Polícia, porque ele nem carta de condução tinha! Eu disse ao princípio que nunca me roubaram nada? Mentira. Roubaram-me a estrelinha dum mercedes, as roscas dos pneus dum outro carro e metade do friso do vidro da frente do meu atual carro. Mas não atribuo esses roubos a qualquer gang organizado. Limito-me a pensar que algum transeunte que passou pelo Largo da Igreja tinha necessidade dessas componentes…

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