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Dias felizes para doentes de Alzheimer
​ sempre que a música toca 
 
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A forma como se encara esta doença, as estratégias que vão sendo aplicadas pelas instituições, a resposta das entidades hospitalares nesta reportagem
Autor: Sílvia Agostinho 
24 julho de 2017

​Num grupo de uma dezena de idosos que se junta ao final da tarde numa sala da Santa Casa da Misericórdia da Merceana, dona Laura é das que mais se destaca. Apesar da doença de Alzheimer consegue ser minimamente comunicativa, e saúda duas mulheres que entram na sala de forma vigorosa – “Vocês é que estão ótimas e bonitas”. Os restantes idosos permanecem de olhar vazio, mas ao mesmo tempo suplicante de alguma atenção. Calados aguardam pela entrada em cena de uma companhia que, duas a três vezes por semana, os brinda com um momento invulgar. Trata-se do musicoterapeuta Hugo Sampaio que há dois anos que procura estimular através da música os utentes da Misericórdia da Merceana. Entre os progressos verificados estão os casos de Laura e Virgínia que, nesta nova fase, se apresentam “mais calmas”. “Em especial a dona Laura anda mais simpática”. (Os doentes de Alzheimer são por norma agitados e nervosos, tendo por vezes alguns comportamentos mais bruscos).
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Laura é especialmente comunicativa e vai dando a informação de que já almoçou e que as aulas são giras. Nas demências e com enfoque no alzheimer as memórias que persistem são as da infância, e nesse aspeto Hugo usa o truque de ir buscar músicas mais antigas e começar a tocá-las. A cantiga “Rosa arredonda a saia” é uma das que inevitavelmente vem à baila e começa a ser, aos poucos, trauteada por alguns dos utentes com a ajuda do músico. Laura parece estar bem a par da letra da canção, mas quando se lhe pergunta a idade inevitavelmente sente-se um calafrio – “Parece que são 180”. A resposta não espanta Hugo que informa que normalmente aquela utente diz que tem 42 anos. Não foi o caso naquele dia. Outro utente, José Maria, até ali mergulhado nos seus silêncios, também vai correspondendo a uma outra canção da sua juventude – “Tingo lingo lingo que coisa bonita, que coisa catita”, assim dizia o refrão.

As memórias auditivas são as últimas a perderem-se nas demências. Primeiro vai-se a memória dos nomes, a memória visual, mas o sentido da audição é o que teima em perdurar. “Já aconteceu em algumas ocasiões estar com o idoso, cantar com ele, e ele cantar comigo, e ficar a saber que umas horas depois essa pessoa partiu”, enfatiza o musicoterapeuta para demonstrar até que ponto os sons e a música têm tanta importância no ser humano. “A memória musical é das últimas a morrer”. “Aliás, já aconteceu estar com esse idoso a cantar, e cinco minutos depois saber da sua partida”. Para Hugo este “é um trabalho muito duro”.
 
Nisto começa a trautear o Malhão a ver se espevita a dona Virgínia que no dia da nossa reportagem recebia a visita da filha. As visitas dos familiares têm uma influência capital no estado destes doentes, mesmo naqueles que se encontram numa demência profunda – “Eles sentem a presença das pessoas e isso influencia-os”, refere Hugo. E agora chega a hora de Laura mostrar que ainda sabe a tabuada, e responder 16 quando se pergunta quanto é 4x4. E a explicação é simples “as memórias que ficam são aquelas que foram repetidas muitas vezes”. E por isso as lengalengas também não escapam – “Qual e coisa qual é ela, que cai no chão fica amarela?”, foi outro dos desafios bem-sucedidos. No caso de outro utente, João, reage especialmente, ainda que com muita dificuldade, quando ouve a palavra “amigo”.

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Laura não resistiu a dançar com Hugo
​Neste tipo de terapias uma das ideias a reter é que não se deve dizer ao idoso que está a fazer mal. “Se eu fizer algo que a pessoa possa achar incorreto, passa a reagir com medo, e dificilmente podemos voltar a trabalhar com eles, deixam de gostar de nós”.
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Virgínia foi diagnosticada há poucos anos com a doença, que no entanto se manteve estacionária. Não se lembra que não pode andar, pois está numa cadeira de rodas, mas as capacidades de fala e outras não estão muito comprometidas, e também vai dando alguma réplica a Hugo Sampaio. O som do acordeão, talvez por evocar os bailes que frequentaram na juventude, é para estes idosos algo fascinante. Laura nesta altura responde que tem 50 anos, mas com pouca convicção – “Já não me lembro bem”. Já Franquelim reage a passodobles e diz logo “Vila Franca”, a sua terra da qual diz ter saudades. Foi toureiro e diz que andou por terras como Azambuja e Arruda nas lides tauromáquicas.

Luísa Silva, que reside em Aldeia Galega da Merceana, é filha de Virgínia que conta com 92 anos, a qual está na instituição há dois. Há 10 anos que foi diagnosticada com a doença. Os primeiros sintomas apareceram e Luísa lembra-se que a mãe deitava fora os comprimidos porque não se lembrava se já os tinha tomado. Também não se lembrava que tinha jantado, e voltava a comer, por exemplo. “O olhar dela também já não era normal, era de alguém que tinha medo e se sentia perturbada”. Começou a ser seguida, e no seu caso a medicação conjugada com a terapia fez pelo menos com que a doença não avançasse especialmente por enquanto. Neste caso, as memórias mais antigas são as que se apresentam como significativas.
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Luísa acompanha a mãe nestas sessões
​Luísa Silva diz que a mãe era muito comunicativa antes da doença e que ficou mais parada. “Ela também fala muito de visões que tem, por vezes coisas más, outras mais simpáticas”. Quando jovem, Virgínia era uma mulher com o seu quê de vaidade, e por isso a filha quando compra roupa nova traz para que a mãe possa ver – “Ela gosta muito de apreciar”. João Luís, de Aldeia Gavinha, todas as semanas vem visitar a mãe já com 97 anos. A idade avançada trouxe recentemente alguns sintomas de demência. Por ter surgido numa idade bastante tardia, a aceitação da doença é mais natural – “Procuro ouvi-la e não contrariá-la, deixo que desenrole as suas histórias, como a que contou no outro dia em que dizia que a mãe dela a tinha vindo visitar”. A tia é que partiu com Alzheimer: “Dizia sempre que não me conhecia de lado nenhum, não se lembrava de mim, mas dias antes de morrer quando a visitei apertou-me bastante a mão, como a não me querer largar. Entendo aquilo como uma despedida”. Hugo, no final da sessão, visita Asdrúbal, que se encontra acamado e que responde sempre que o estímulo se relaciona com a sua profissão e o tempo que passou na TAP. O musicoterapeuta até compôs  uma canção original a evocar essa parte da sua vida. Este utente ainda é relativamente jovem para esta doença. Está na casa dos 50, (nasceu em 1963) mas enfrenta um um tempo presente muito difícil. Esteve em Moçambique e a canção do Duo ouro Negro “Elisa Ué, Elisa Uá” também lhe traz emoções e começa a cantá-la. Para si Hugo Sampaio é “um grande amigo”.
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“Fazer com que estes portadores de demências que estão na Santa Casa se sintam válidos” é o grande objetivo destas sessões explícita Hugo Sampaio. Por comparação com outros lares, nesta instituição “não se desiste dos utentes e tentamos estimulá-los ao máximo” refere o musicoterapeuta em consonância com Diana Costa, diretora técnica.

Hugo Sampaio sublinha que apesar de não ser fácil lidar com estas realidades, acaba por ser muito compensador como no caso “do senhor acamado que visitámos ao ter aprendido uma canção”. “O carinho deles e a forma como nos cumprimentam é muito importante para nós. Noto esse sorriso”.

A nossa reportagem acompanhou ainda um outro grupo de idosos. Apesar de não sofrerem com Alzheimer ou outras demências temem a possibilidade de poderem vir a padecer da doença. É o caso de Maria do Carmo, de Vale Benfeito, que está neste lar desde há um ano e meio. Perdeu a capacidade de andar de um dia para o outro mas espera vir a recuperar. Com 75 anos, revela que todos os dias pede a Deus para nunca sofrer de Alzheimer, porque tem visto “casos muito delicados” entre os demais “utentes” da instituição. Elias Martins, 89 anos, de Cabanas de Torres, encontra-se no lar há dois anos e meio. As visitas das filhas são a sua maior alegria. Mas este é também um utente muito extrovertido – Sempre disponível para cantar à medida que vai sendo acompanhado por Hugo e pelos seus vários instrumentos. Várias vezes por semana, as crianças do jardim-de-infância convivem na mesma sala com os idosos, e há lugar a uma troca de abraços, e a um convívio diferente entre as gerações. Para Isabel Alqueidão, filha de Elias Martins, tem sido positiva a estadia do pai nesta instituição, tendo em conta a estimulação cognitiva de que usufruiu “quando antes estava em casa e sentia-se sozinho”. “Agora anda mais bem-disposto, e é importante a estimulação mental que recebe”. 
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Sónia Costa é medica neurologista no Hospital de Vila Franca e acredita nas novas descobertas
​Hospital de Vila Franca
Metade das consultas de neurologia são dedicadas às demências


Cerca de metade das consultas prestadas no serviço de Neurologia no Hospital de Vila Franca de Xira prende-se com o diagnóstico de casos de Alzheimer e outras demências. O isolamento e o mundo rural não deixam de estar associados a alguns diagnósticos tardios. Contudo o facto de cada vez mais se falar nesta doença também tem despertado os receios da população que procura a consulta no sentido de fazer alguns despistes que podem revelar-se como positivos ou negativos. Os médicos de família “também têm sido sensibilizados para estas realidades”, refere a médica neurologista Sónia Costa que presta serviço no hospital.

Para despiste da doença, é feito um painel de análises e uma TAC que podem ajudar a descartar a existência ou não de uma doença degenerativa. O tratamento para o Alzheimer “não é curativo até à data”, refere, esclarecendo ainda que “também não podemos dizer que atrase a progressão porque é meramente sintomático”, embora haja esperanças a nível internacional que o próximo passo pode estar para breve e se não for no sentido da cura pelo menos que possa agir no retardamento ao máximo da sua evolução para estádios mais dolorosos. A medicação normalmente bem tolerada tendo em conta as faixas etárias em causa, e o aparecimento de outras doenças associadas à idade, tem como um dos principais intuitos proporcionar “momentos de maior lucidez, e de momentos mais calmos porque a doença também sugere alterações a nível do comportamento como alucinações e irritabilidade”. Complexo é fazer com que os doentes tomem a sua medicação, porque nem se dão conta do seu estádio, e nesse aspeto é importante o apoio dos familiares ou dos lares no caso dos idosos que já se encontrem institucionalizados. A evolução do Alzheimer pode ir até aos 10 anos, 95 por cento dos casos são desenvolvidos acima dos 65 anos, “mas não se morre necessariamente da doença”. “O que acontece é que como perdem autonomia, e perdem até a capacidade de andar, de falar, ficam acamados e por isso tornam-se mais sujeitos a infeções e insuficiências respiratórias”, refere Sónia Costa.


O conceito de envelhecimento ativo é importante nas idades acima dos 65 anos. Apostar-se em exercício físico específico para estas faixas etárias e numa alimentação saudável, com base na dieta mediterrânica, podem ser determinantes apesar de “ainda não existir uma prova científica cabal mas a maioria dos estudos vão nesse sentido”. No âmbito das consultas, o hospital também sugere estratégias de estimulação cognitiva no serviço de medicina física e reabilitação em que são elaborados planos tendo em vista essas performances. A profissional de saúde considera neste aspeto a necessidade de as instituições passarem a fazer uma aposta nestes doentes e com isso delinearem também as suas estratégias, principalmente nos estágios ainda recentes da doença. “Como sabemos o país é carente desse tipo de vocação por parte das IPSS’s”. “Nas consultas recomendo sempre um bom ambiente familiar, tranquilo, e com alguma estimulação, o que é muito mais importante do que os comprimidos”.
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Nos últimos anos com o aumento da esperança média de vida, a pressão internacional para que haja uma cura para a doença de Alzheimer tem-se intensificado. Na imprensa surgem a todo o momento notícias que dão conta de mais alguns avanços, e neste aspeto Sónia Costa releva “os muitos ensaios clínicos” apesar de negativos. O antigo presidente dos Estados Unidos, Obama, referenciou até que a cura deveria ser descoberta até 2040 no máximo. “Tenho esperança nos novos ensaios porque a medicina está a avançar junto de pessoas que ainda têm poucos sintomas da doença. Os anteriores foram desenvolvidos em indivíduos com um quadro clínico já muito avançado”. Para a neurologista já seria um bom prenúncio se a doença conseguisse adquirir um padrão crónico mas com as evoluções mais espaçadas no tempo. “Nos últimos anos, avançou-se muito, e socialmente tende-se a perder o estigma que havia até aqui, quando os doentes eram chamados de esclerosados. Por isso penso que seria fantástico conseguirmos retardar em cerca de 10 ou 20 anos o aparecimento das fases mais críticas”. 
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ImagemEduarda Silva e Patrocínia Gonçalves
Núcleo da Alzheimer Portugal no Ribatejo
“A doença ainda é um tabu”


A funcionar em Almeirim desde há 13 anos, o núcleo da associação Alzheimer Portugal presta apoio aos doentes e seus familiares ou cuidadores em todos os concelhos do distrito de Santarém. Através de uma equipa composta por assistente social e psicólogos elabora uma série de estratégias que vão desde a componente informativa sobre a doença, até sessões de grupo, e articulação com outras entidades dos concelhos como Câmaras, Segurança Social, IPSS’s.

Eduarda Duarte salienta o grupo de apoio porque permite que as pessoas partilhem experiências e possam chegar a conclusões de forma a conseguir gerir a doença dos seus familiares. A associação faz também atendimento em gabinetes noutros concelhos na área da psicologia e serviço social. “As famílias ainda têm muita falta de informação, e em parte o Alzheimer continua a ser um tabu, vista como a doença das pessoas que estão doidas. As mentalidades ainda são fechadas, mas começamos a assistir a alguma procura da nossa associação”. O núcleo está articulado com o Hospital de Santarém, centros de saúde, e neurologistas a título particular. A aposta em formação às IPSS’s "é também muito importante porque as auxiliares muitas vezes não estão preparadas para lidar com as demências”. Para Eduarda Duarte, a doença tem tomado contornos cada vez mais assustadores e também em pessoas mais novas. “Estão a aparecer muitos casos em indivíduos na casa dos 50 anos”, e por isso “o núcleo tem apostado cada vez mais na sensibilização da comunidade” até junto das “crianças que por vezes têm avós nessa situação”.

Patrocínia Gonçalves, 78 anos, começou a frequentar o núcleo devido à doença do marido, falecido há seis anos, e cujos sintomas surgiram quando tinha 70 anos. Os primeiros sintomas prendiam-se com uma “apatia muito grande”. Dedicava-se a uma pequena oficina, “e quando desmontava as peças já não conseguia voltar a montar” quando a doença se começou a manifestar. Aos poucos “foi-se esquecendo de tudo”. Depois de ser diagnosticado, Patrocínia Gonçalves e o marido conheceram o núcleo onde participaram ativamente nas sessões de grupo (no caso dela) e nas sessões de psicologia e estimulação cognitiva no caso dele. “Encontrei muito apoio nesse grupo, e adorei ter participado. Aprendi muito”.
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No quadro da doença, o marido tomou algumas atitudes agressivas: “Ainda me puxou o cabelo, quando antes nunca foi violento”. Mas teve sempre muita paciência e na sua memória estão sobretudo os episódios em que mergulhado na doença continuava a gostar de dançar, e poucos dias antes de falecer “durante todo o dia dançou”. As pessoas “até comentavam que nem parecia que estava doente”. “Era muito sensível à música”. Acabou por falecer de uma embolia cerebral no espaço de 20 minutos. “Morreu ao pé de mim, e a dizer o meu nome que já não conseguia pronunciar há muito tempo. Mas disse Patrocínia antes de fechar os olhos”. 

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