António Luís dos Santos, mais conhecido pelo Cagalhufa, é um dos antigos bombeiros dos Voluntários de Azambuja que está presente em várias fotos que compõem a exposição que retrata alguns dos momentos do passado da corporação, patente no salão de festas da associação, inaugurada no passado mês de fevereiro. E é com a voz embargada que recorda à nossa reportagem quando em 1967, por exemplo, atravessou várias localidades da região para socorrer as vítimas das grandes cheias de Lisboa. “Morreu muita gente, nem consigo falar, até me dá vontade de chorar”, diz emocionado.
O antigo bombeiro, que esteve 19 anos na corporação, passa em revista aqueles tempos, quando a 27 de novembro de 1967 o temporal levou a vida a 700 pessoas em vários concelhos da região de Lisboa. “Tinha-me deitado à meia-noite, quando toca a sirene, levantei-me, chovia tanta água, sem nunca parar”, enfatiza referindo ao atual comandante dos bombeiros, Armando Baptista, também presente nesta reportagem, que o carro da corporação à época era um Buick descapotável, (também retratado na exposição), sem as condições dos veículos atuais face à carga de trabalhos que os bombeiros tinham antigamente, sobretudo naqueles dias das cheias.
“Fomos 27 homens naquele carro descapotável fazer esse socorro, quando na zona da Guarita, ficámos sem luz na viatura. Lembro-me de levarmos pilhas. Entre outros ia eu, o comandante, o Mário Jorge, o Cassiano”, relembra e continua – “Na zona da Milhariça em Aveiras de Cima, pensámos a dada altura que íamos morrer, porque as rodas estavam completamente dentro de água, naquela enxurrada enorme, ainda por cima num carro descapotável e a chover torrencialmente; mas a valer! Isso é que era ser bombeiro, não era como agora, em que há todas as condições, e ainda bem que assim é, que as coisas melhoraram!”. António Luís dos Santos recorda-se que na época poucos davam valor ao trabalho dos bombeiros: “Diziam que só andávamos nisto para comer e beber, esse tipo de bocas”. “Havia sempre pessoas que discriminavam o serviço dos bombeiros, porque nem sempre era possível sermos mais breves no auxílio”, acrescenta outro dos históricos da corporação, César Camarista.
Depois seguiu-se o salvamento das vítimas das cheias: “Todos molhados, a chover e a tentar resgatar quem podíamos. Diga lá se isto não é amor à farda, senhor comandante?!”, volta a interpelar. Mas as cheias de 1967 tiveram ainda mais um episódio para os voluntários de Azambuja – “Avisaram-nos que tínhamos de ir para a Vala do Carregado, que estava tudo morto por lá. Lá fomos nós outra vez, de novo com água pelo corpo todo, mas antes, ainda, bebemos um copo de aguardente para nos aquecermos. Assim que chegámos ao Carregado, toca de retirar as pessoas dentro do rio, completamente geladas e às costas, mas a força de vontade era tanta, que dava gosto um gajo salvar qualquer pessoa”, resume nitidamente emocionado o Cagalhufa. Rosa Batalha, viúva do bombeiro Sebastião, também se lembra bem deste episódio, e da paixão do seu marido: “Realmente era uma paixão, porque ele não ganhava dinheiro nenhum com isso, até fui contra, porque quando o meu pai morreu os bombeiros não o foram socorrer a tempo. Guardo essa mágoa”.
Mas a aventura de António Luís dos Santos ainda não tinha terminado, quando soube, nesses mesmos dias desse novembro, que a mãe tinha de ser levada ao hospital. “Lá fui pelo meio da enxurrada dar a volta por Alcoentre para ir para Alenquer, que não dava para passar a Vila Nova da Rainha. A minha mãe esvaída em sangue, e quando cheguei a Lisboa só dava para ver uma esteira de gente deitada, mortos e mais mortos, a minha mãe aos gritos, tentei arranjar maneira de falar lá com um médico conhecido no hospital de São José, mas havia demasiada gente aflita.” António Luís dos Santos, não tem dúvidas: “Em 1967, as cheias foram uma autêntica carnificina”. Susana Rodrigues da direção dos bombeiros até se recorda de ter ouvido falar que “corpos do Carregado chegaram até às OGMA em Alverca pelo rio fora”.
Mas o Ribatejo como terra pródiga em grandes inundações tem outros registos, e César Camarista ainda se lembra de em 1955 ter havido uma cheia no campo, e de conjuntamente com “o Fernando e o Manuel Magalhães ter carregado os corpos numa maca do hospital desde o cais do esteiro até ao cemitério”.
Mas outras histórias ficaram na memória de António Luís dos Santos como um grande incêndio na serra de Montejunto de novo “no buickinha que era uma grande máquina, com mais de 10 homens em cima, e a deitar abaixo as árvores com motosserras de 15 quilos nas unhas”; ou quando tiveram de resgatar um homem que caíra num poço em Vale do Paraíso – “Aquilo tinha uma fundura doida, com quase 10 metros de água, e o homem andava lá a boiar, completamente inchado, mais parecia uma peça de museu, nem lhe passa pela cabeça o peso que tinha, tivemos de fazer ali muitas manobras para tirar o corpo”.
Mas nestas andanças dos bombeiros, também houve histórias insólitas, e neste caso o antigo bombeiro César Camarista recorda-se de ter estado num acidente ferroviário na Vala do Carregado, e quando estava debaixo de uma das carruagens “começaram a cair moedas do bolso de um morto em cima do capacete”.
Hoje, ao olhar para a associação, António Luís dos Santos é também crítico – “Se estivessem cá os mesmos homens de antes, este quartel era um luxo, não souberam estimar esta casa, depois da inauguração, passados uns dias, já havia sofás retalhados”. Também presente neste encontrar em que o mote poderia ser aquela frase muito batida “Recordar é Viver”, Armando Baptista não tem dúvidas de que homens como estes “são a melhor herança que podíamos ter, deixaram essa coragem aos mais novos, que encontro nos atuais elementos”. Também emocionado, espera que os seus homens sejam também uma referência para as futuras gerações. Na exposição, é possível ver “algumas passagens importantes da associação, desde a primeira foto dos bombeiros ainda na década de 30, a foto com o Bwick, a inauguração do quartel há 40 anos, bem como uma foto com as duas primeiras bombeiras, na década de 60, e quando ainda não lhes era permitido fardarem-se, bem como a foto da romaria ao cemitério”. Mas também uma foto do primeiro estandarte, com 84 anos – “Muito bonito”, acrescenta o Cagalhufa. “Convidamos toda a população a vir visitar esta exposição, somos várias gerações mas o corpo de bombeiros é só um”, refere Susana Rodrigues.
Sílvia Agostinho
31-03-2015
O antigo bombeiro, que esteve 19 anos na corporação, passa em revista aqueles tempos, quando a 27 de novembro de 1967 o temporal levou a vida a 700 pessoas em vários concelhos da região de Lisboa. “Tinha-me deitado à meia-noite, quando toca a sirene, levantei-me, chovia tanta água, sem nunca parar”, enfatiza referindo ao atual comandante dos bombeiros, Armando Baptista, também presente nesta reportagem, que o carro da corporação à época era um Buick descapotável, (também retratado na exposição), sem as condições dos veículos atuais face à carga de trabalhos que os bombeiros tinham antigamente, sobretudo naqueles dias das cheias.
“Fomos 27 homens naquele carro descapotável fazer esse socorro, quando na zona da Guarita, ficámos sem luz na viatura. Lembro-me de levarmos pilhas. Entre outros ia eu, o comandante, o Mário Jorge, o Cassiano”, relembra e continua – “Na zona da Milhariça em Aveiras de Cima, pensámos a dada altura que íamos morrer, porque as rodas estavam completamente dentro de água, naquela enxurrada enorme, ainda por cima num carro descapotável e a chover torrencialmente; mas a valer! Isso é que era ser bombeiro, não era como agora, em que há todas as condições, e ainda bem que assim é, que as coisas melhoraram!”. António Luís dos Santos recorda-se que na época poucos davam valor ao trabalho dos bombeiros: “Diziam que só andávamos nisto para comer e beber, esse tipo de bocas”. “Havia sempre pessoas que discriminavam o serviço dos bombeiros, porque nem sempre era possível sermos mais breves no auxílio”, acrescenta outro dos históricos da corporação, César Camarista.
Depois seguiu-se o salvamento das vítimas das cheias: “Todos molhados, a chover e a tentar resgatar quem podíamos. Diga lá se isto não é amor à farda, senhor comandante?!”, volta a interpelar. Mas as cheias de 1967 tiveram ainda mais um episódio para os voluntários de Azambuja – “Avisaram-nos que tínhamos de ir para a Vala do Carregado, que estava tudo morto por lá. Lá fomos nós outra vez, de novo com água pelo corpo todo, mas antes, ainda, bebemos um copo de aguardente para nos aquecermos. Assim que chegámos ao Carregado, toca de retirar as pessoas dentro do rio, completamente geladas e às costas, mas a força de vontade era tanta, que dava gosto um gajo salvar qualquer pessoa”, resume nitidamente emocionado o Cagalhufa. Rosa Batalha, viúva do bombeiro Sebastião, também se lembra bem deste episódio, e da paixão do seu marido: “Realmente era uma paixão, porque ele não ganhava dinheiro nenhum com isso, até fui contra, porque quando o meu pai morreu os bombeiros não o foram socorrer a tempo. Guardo essa mágoa”.
Mas a aventura de António Luís dos Santos ainda não tinha terminado, quando soube, nesses mesmos dias desse novembro, que a mãe tinha de ser levada ao hospital. “Lá fui pelo meio da enxurrada dar a volta por Alcoentre para ir para Alenquer, que não dava para passar a Vila Nova da Rainha. A minha mãe esvaída em sangue, e quando cheguei a Lisboa só dava para ver uma esteira de gente deitada, mortos e mais mortos, a minha mãe aos gritos, tentei arranjar maneira de falar lá com um médico conhecido no hospital de São José, mas havia demasiada gente aflita.” António Luís dos Santos, não tem dúvidas: “Em 1967, as cheias foram uma autêntica carnificina”. Susana Rodrigues da direção dos bombeiros até se recorda de ter ouvido falar que “corpos do Carregado chegaram até às OGMA em Alverca pelo rio fora”.
Mas o Ribatejo como terra pródiga em grandes inundações tem outros registos, e César Camarista ainda se lembra de em 1955 ter havido uma cheia no campo, e de conjuntamente com “o Fernando e o Manuel Magalhães ter carregado os corpos numa maca do hospital desde o cais do esteiro até ao cemitério”.
Mas outras histórias ficaram na memória de António Luís dos Santos como um grande incêndio na serra de Montejunto de novo “no buickinha que era uma grande máquina, com mais de 10 homens em cima, e a deitar abaixo as árvores com motosserras de 15 quilos nas unhas”; ou quando tiveram de resgatar um homem que caíra num poço em Vale do Paraíso – “Aquilo tinha uma fundura doida, com quase 10 metros de água, e o homem andava lá a boiar, completamente inchado, mais parecia uma peça de museu, nem lhe passa pela cabeça o peso que tinha, tivemos de fazer ali muitas manobras para tirar o corpo”.
Mas nestas andanças dos bombeiros, também houve histórias insólitas, e neste caso o antigo bombeiro César Camarista recorda-se de ter estado num acidente ferroviário na Vala do Carregado, e quando estava debaixo de uma das carruagens “começaram a cair moedas do bolso de um morto em cima do capacete”.
Hoje, ao olhar para a associação, António Luís dos Santos é também crítico – “Se estivessem cá os mesmos homens de antes, este quartel era um luxo, não souberam estimar esta casa, depois da inauguração, passados uns dias, já havia sofás retalhados”. Também presente neste encontrar em que o mote poderia ser aquela frase muito batida “Recordar é Viver”, Armando Baptista não tem dúvidas de que homens como estes “são a melhor herança que podíamos ter, deixaram essa coragem aos mais novos, que encontro nos atuais elementos”. Também emocionado, espera que os seus homens sejam também uma referência para as futuras gerações. Na exposição, é possível ver “algumas passagens importantes da associação, desde a primeira foto dos bombeiros ainda na década de 30, a foto com o Bwick, a inauguração do quartel há 40 anos, bem como uma foto com as duas primeiras bombeiras, na década de 60, e quando ainda não lhes era permitido fardarem-se, bem como a foto da romaria ao cemitério”. Mas também uma foto do primeiro estandarte, com 84 anos – “Muito bonito”, acrescenta o Cagalhufa. “Convidamos toda a população a vir visitar esta exposição, somos várias gerações mas o corpo de bombeiros é só um”, refere Susana Rodrigues.
Sílvia Agostinho
31-03-2015
Comentários
Ainda não há novidades ...