Conselho literário
“A noite não é eterna”, de Ana Cristina Silva
Por Fátima Faria Roque
Diretora do Departamento de Educação e Cultura, da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
Doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura. Investigadora no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa.
“(…) primeiro estava a revolução e o país e só depois a família (…)”, é uma das frases do mais recente livro de Ana Cristina Silva, A noite não é eterna, que nos transporta ao pesadelo em que se transformou a vida na Roménia de Ceausescu.
Conhecemos a obra de Ana Cristina Silva e temos mesmo acompanhado a sua intensa produção literária, iniciada em 2002, com Mariana, todas as cartas. Recordamos, aliás, o momento em que a autora, durante a apresentação de um dos seus livros, afirmou: “não sei se sei escrever romances”. Pois bem, a Mariana, todas as cartas sucederam-se:
A Mulher Transparente (2003),
Bela (2005),
À Meia-Luz (2006),
As Fogueiras da Inquisição (2008),
A Dama Negra da Ilha dos Escravos (2009),
Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid (2010),
Cartas Vermelhas (2011), selecionado como livro do Ano pelo jornal Expresso e finalista do Prémio Literário Fernando Namora;
O Rei do Monte Brasil (2012), finalista do Prémio SPA/RTP e do Prémio Literário Fernando Namora e vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues;
A Segunda Morte de Anna Karénina (2013), finalista do Prémio Literário Fernando Namora;
A Noite não É Eterna (2016)
Para quem não se encontrava certa da sua capacidade de escrita, o mínimo que poderemos dizer é que, da nossa parte, não nos resta qualquer dúvida de estarmos perante uma romancista de fôlego.
Os romances de Ana Cristina Silva – e assumimos desde já não ter lido todos – centram-se sempre num determinado momento ou personagem histórico, recriando, ou melhor, ficcionando, a partir de um conjunto de dados da historiografia oficial, vidas, sentimentos e situações, que poderiam, efectivamente, ter acontecido. E é, precisamente, neste “poderia ter sido assim”, que gostaríamos de focar a importância de uma escrita como a de Ana Cristina Silva.
Mais do que falarmos aqui em “romance histórico”, arredios que somos à estreiteza de qualquer sistema de classificações e ao cânone literário, falaremos em “essência da literatura”. E que pretendemos nós significar com tal expressão? Em primeiro lugar, que todo o romance é romance histórico, na medida em que coloca em primeiro plano determinado período da História. Mas, para o que hoje nos interessa, a questão passa por verificarmos que, na obra desta autora, na obra que tem vindo a legar-nos, o que se joga, verdadeiramente, é a condição humana. E essa não tem época histórica ou data definida para ser evocada.
Com um particular enfoque na figura da mulher, a escrita de Ana Cristina Silva consegue prender-nos da 1.ª à última linha, pela clareza e limpidez da sua escrita, pela forma como desenvolve a trama de cada romance, pela complexa teia de emoções dos personagens e das situações com que são confrontados, numa palavra, por nos obrigar a reflectir sobre o modo como agiríamos caso nos encontrássemos em situações idênticas. Este é o verdadeiro poder da literatura, o seu fascínio e o seu enigma também. E só a literatura, a boa literatura entenda-se, detém este poder.
Voltemos ao romance que aqui nos traz hoje e que tem merecido uma justíssima recepção por parte da designada “crítica literária”. Não revelaremos aqui detalhes deste A noite não é eterna, até porque, sendo importantes as vidas de Nadia, Paul, Drago, Inga ou Vasile, o que retemos da leitura destas páginas é a sua implicação nas nossas, ou seja, se mensagem literária nos transmite este livro será a que a luta pela dignidade humana não é hoje, como não será jamais, histórica, mas sim batalha a travar diariamente. Um grande amigo e um grande escritor, José Saramago, dizia: “porque se dobram as pessoas?”. Pois bem, nos romances de Ana Cristina Silva, as pessoas não se dobram. Erguem-se e erguem a voz para gritar bem alto e denunciar a injustiça e a barbárie.
Aconteceu na Roménia. Aconteceu na China. Aconteceu na Alemanha. Aconteceu – e está a acontecer – na Síria. Acontece perante os nossos olhos, todos os dias, no horário nobre das televisões. O mundo tal qual o conhecemos hoje, não é mais do que a “aldeia global” que determinado teórico falava há algumas décadas atrás. Porque acontece e o que poderemos fazer para o impedir, é a interrogação a fazer. Se não quando olhamos para o pequeno écran, então quando lemos um livro como o da Ana Cristina Silva. Esta é a literatura que importa, a que apela à responsabilidade ética de cada um de nós, uma responsabilidade que não se esgota jamais numa sociedade que se quer democrática e livre.
Terminamos, revelando mais um segredo da Ana Cristina Silva: disse-nos um dia não saber escrever diálogos. Mas como sabes Ana Cristina! O que as tuas personagens não dizem entre travessões é ainda mais forte e perturbador porque dito em silêncio. E se a História oficial não nos dá “o grito e a dor” (expressão de Saramago), as personagens dos teus romances aí estão, para nos recordar que o passado pesa sobre nós e deve ser interpretado como herança e responsabilidade.
(Fábrica das Palavras, 06 de Maio de 2016 - apresentação do romance de Ana Cristina Silva, A noite não é eterna)
“A noite não é eterna”, de Ana Cristina Silva
Por Fátima Faria Roque
Diretora do Departamento de Educação e Cultura, da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
Doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura. Investigadora no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa.
“(…) primeiro estava a revolução e o país e só depois a família (…)”, é uma das frases do mais recente livro de Ana Cristina Silva, A noite não é eterna, que nos transporta ao pesadelo em que se transformou a vida na Roménia de Ceausescu.
Conhecemos a obra de Ana Cristina Silva e temos mesmo acompanhado a sua intensa produção literária, iniciada em 2002, com Mariana, todas as cartas. Recordamos, aliás, o momento em que a autora, durante a apresentação de um dos seus livros, afirmou: “não sei se sei escrever romances”. Pois bem, a Mariana, todas as cartas sucederam-se:
A Mulher Transparente (2003),
Bela (2005),
À Meia-Luz (2006),
As Fogueiras da Inquisição (2008),
A Dama Negra da Ilha dos Escravos (2009),
Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid (2010),
Cartas Vermelhas (2011), selecionado como livro do Ano pelo jornal Expresso e finalista do Prémio Literário Fernando Namora;
O Rei do Monte Brasil (2012), finalista do Prémio SPA/RTP e do Prémio Literário Fernando Namora e vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues;
A Segunda Morte de Anna Karénina (2013), finalista do Prémio Literário Fernando Namora;
A Noite não É Eterna (2016)
Para quem não se encontrava certa da sua capacidade de escrita, o mínimo que poderemos dizer é que, da nossa parte, não nos resta qualquer dúvida de estarmos perante uma romancista de fôlego.
Os romances de Ana Cristina Silva – e assumimos desde já não ter lido todos – centram-se sempre num determinado momento ou personagem histórico, recriando, ou melhor, ficcionando, a partir de um conjunto de dados da historiografia oficial, vidas, sentimentos e situações, que poderiam, efectivamente, ter acontecido. E é, precisamente, neste “poderia ter sido assim”, que gostaríamos de focar a importância de uma escrita como a de Ana Cristina Silva.
Mais do que falarmos aqui em “romance histórico”, arredios que somos à estreiteza de qualquer sistema de classificações e ao cânone literário, falaremos em “essência da literatura”. E que pretendemos nós significar com tal expressão? Em primeiro lugar, que todo o romance é romance histórico, na medida em que coloca em primeiro plano determinado período da História. Mas, para o que hoje nos interessa, a questão passa por verificarmos que, na obra desta autora, na obra que tem vindo a legar-nos, o que se joga, verdadeiramente, é a condição humana. E essa não tem época histórica ou data definida para ser evocada.
Com um particular enfoque na figura da mulher, a escrita de Ana Cristina Silva consegue prender-nos da 1.ª à última linha, pela clareza e limpidez da sua escrita, pela forma como desenvolve a trama de cada romance, pela complexa teia de emoções dos personagens e das situações com que são confrontados, numa palavra, por nos obrigar a reflectir sobre o modo como agiríamos caso nos encontrássemos em situações idênticas. Este é o verdadeiro poder da literatura, o seu fascínio e o seu enigma também. E só a literatura, a boa literatura entenda-se, detém este poder.
Voltemos ao romance que aqui nos traz hoje e que tem merecido uma justíssima recepção por parte da designada “crítica literária”. Não revelaremos aqui detalhes deste A noite não é eterna, até porque, sendo importantes as vidas de Nadia, Paul, Drago, Inga ou Vasile, o que retemos da leitura destas páginas é a sua implicação nas nossas, ou seja, se mensagem literária nos transmite este livro será a que a luta pela dignidade humana não é hoje, como não será jamais, histórica, mas sim batalha a travar diariamente. Um grande amigo e um grande escritor, José Saramago, dizia: “porque se dobram as pessoas?”. Pois bem, nos romances de Ana Cristina Silva, as pessoas não se dobram. Erguem-se e erguem a voz para gritar bem alto e denunciar a injustiça e a barbárie.
Aconteceu na Roménia. Aconteceu na China. Aconteceu na Alemanha. Aconteceu – e está a acontecer – na Síria. Acontece perante os nossos olhos, todos os dias, no horário nobre das televisões. O mundo tal qual o conhecemos hoje, não é mais do que a “aldeia global” que determinado teórico falava há algumas décadas atrás. Porque acontece e o que poderemos fazer para o impedir, é a interrogação a fazer. Se não quando olhamos para o pequeno écran, então quando lemos um livro como o da Ana Cristina Silva. Esta é a literatura que importa, a que apela à responsabilidade ética de cada um de nós, uma responsabilidade que não se esgota jamais numa sociedade que se quer democrática e livre.
Terminamos, revelando mais um segredo da Ana Cristina Silva: disse-nos um dia não saber escrever diálogos. Mas como sabes Ana Cristina! O que as tuas personagens não dizem entre travessões é ainda mais forte e perturbador porque dito em silêncio. E se a História oficial não nos dá “o grito e a dor” (expressão de Saramago), as personagens dos teus romances aí estão, para nos recordar que o passado pesa sobre nós e deve ser interpretado como herança e responsabilidade.
(Fábrica das Palavras, 06 de Maio de 2016 - apresentação do romance de Ana Cristina Silva, A noite não é eterna)
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