Em tempo de pandemia e isolamento: Militares da GNR fazem de psicólogos de idosos isolados do concelho de Alenquer
Sílvia Agostinho/Miguel António Rodrigues 22-06-2020 às 10:37
Estamos em Casal Serra do Campo, na localidade de Cabeços, numa das partes mais remotas da freguesia de Alenquer, e é aqui que um grupo de militares da GNR de Alenquer, composto por Manuel Novo, Paula Rodrigues, Jorge Fonseca e o coordenador da proteção civil municipal, Rodolfo Batista, vão ao encontro de uma das idosas abrangidas pelo “Programa Apoio 65- Idosos em Segurança”. Maria Margarida Mourão vive sozinha. Desde a pandemia que teve de se habituar ainda mais à solidão, porque o marido faleceu em março. Têm sido dias duros. O filho e os netos visitam-na. As relações com os vizinhos são boas, mas sente-se muito sozinha. Mesmo nestas aldeias vai-se perdendo o contacto mais próximo com quem mora perto à semelhança do que acontece nas grandes cidades.
São na maioria pessoas idosas e muitas com problemas de mobilidade aquelas que estão numa extensa lista da GNR e do município de Alenquer, sinalizadas pelos serviços e que são visitadas quer pela guarda, quer pelo município. Ambas as entidades tentam que não falte nada a estas pessoas, que embora vivam, muitas vezes, com vizinhos por perto, estão isoladas no seu dia a dia. Recentemente passaram por aquelas localidades as equipas do município que distribuíram máscaras gratuitamente. Casa a casa, os operacionais no terreno vão falando com os idosos. Muitos moram sozinhos e precisam, muito mais do que alimentos, precisam de uma palavra de conforto ou simplesmente quem os ouça, já que durante estes dias que passam, não têm contato com outras pessoas nem com os familiares. Sobretudo os filhos estão fora e as visitas destes, embora regulares, não chegam para preencher a solidão. Quando a proteção civil ou a GNR não passa, há pelo menos um telefonema das autoridades, refere Rodolfo Batista, que para além de exercer funções como comandante municipal operacional, é também comandante dos Bombeiros de Alenquer. Batista enaltece a colaboração com a GNR, força de segurança que está na primeira linha no terreno. Um telefonema para os idosos mais isolados ou identificados como prioritários, faz parte das rotinas destes operacionais que não abrandam o trabalho nestes tempos de pandemia.
Maria Margarida Mourão, já com 75 anos, nunca imaginou que ainda fosse a tempo de presenciar algo tão avassalador como a pandemia da Covid-19 – “Não tem sido fácil, nunca vi nada assim, todos com medo uns dos outros e sem podermos ver os nossos familiares. Sem podermos abraçar ou beijar”. Diz que já nem vê notícias sobre o vírus para não se “enervar”. “Faz-me muito mal à cabeça, é preferível esquecer o que se está a passar”. Jorge Fonseca, cabo-chefe, tenta tranquilizar – “Vamos ficar todos bem, não há mal que dure para sempre”.
Foram frequentes, durante a nossa reportagem, os conselhos dados pelos operacionais a estas pessoas. A pensar nas burlas, e nos assaltos que acontecem nos locais mais isolados, os militares e o comandante Rodolfo Batista, foram incansáveis e enfáticos sobre não se abrir a porta a desconhecidos, e a contatarem as autoridades em qualquer caso. Esse parece ser o conselho chave para que estas populações fiquem em segurança.
O filho de Maria Margarida Mourão telefona-lhe todos os dias, mas não é a mesma coisa. Quanto aos vizinhos – “Cada um está na sua casa, mas se for preciso telefonam-me para saber se está tudo bem”. Presença sempre bem-vinda é a dos militares – “São como uma família para mim”. Nesta visita, o Valor Local testemunhou que muitas destas pessoas já vivem de tal forma isoladas que não adotaram praticamente nenhum tipo de prevenção no âmbito da pandemia. As visitas que recebem ficam do lado de fora de casa, porque não entra ninguém, a menos que seja um militar da GNR devidamente identificado.
Depois seguimos para Requeixada, na localidade do Camarnal, onde Maria Vitória, 78 anos, foi surpreendida pela nossa visita. Rapidamente as lágrimas apoderam-se desta idosa, cujo marido se encontra acamado, e que vê nesta chegada das forças de segurança uma oportunidade para desabafar e contar o que lhe vai na alma. O marido, conta-nos, está muito doente, passa os dias na cama sem se conseguir mexer, com o corpo cheio de feridas, e mal consegue falar. Mas se o corpo do marido não lhe dá tréguas, a mente também não, e Maria Vitória tenta contornar, alguns episódios, da melhor maneira que consegue. “No outro dia ele disse que estava a ver uma cobra no teto e eu esforcei-me por fazer de conta que a matava”. As relações com a vizinhança, diz a idosa, também deixam a desejar: sem poder recorrer aos que vivem mais próximos para um pedido de ajuda ou para um desabafo. A Covid-19 parece ser o menor dos problemas numa altura em que os braços não chegam para tratar do marido e o coração salta da boca quando descreve os seus dias. Apesar da vida não ser fácil ainda não perdeu o sentido de humor: “Dizem que o vírus anda para aí, mas não o vejo”, ri-se. O filho trouxe-lhe máscaras e luvas mas confessa que ainda não as colocou, porque não sai de casa – “Não vou andar a tratar das galinhas com máscara, e depois do que aconteceu ao meu marido nunca mais sai daqui para ir à vila. Dou o cartão multibanco à minha filha que faz as compras por mim. Qualquer dia já nem conheço a vila de Alenquer”.
Neste caso os militares fazem também de psicólogos, procurando tranquilizar a idosa o melhor que podem. “Tem de ser forte dona Maria Vitória”, procura aconselhar o cabo Manuel Novo. As filhas prestam o apoio possível, contudo a solidão e o desamparo vão preenchendo o dia-a-dia da idosa que já não consegue falar com o marido. “Há dias em que não vejo ninguém, nem converso com ninguém, é uma tristeza”, diz. Para Maria Vitória as visitas da GNR são importantes porque “sempre dá para conversar um bocadinho”. Conta-nos que os vizinhos mais próximos vivem a seu modo e não há proximidade. “As pessoas andam metidas com as suas vidas, ninguém pergunta por mim nem pelo meu marido”, lamenta-se. Noutra zona da freguesia, em Casal de Santo António, Paredes, fomos ao encontro de Leonor Abrantes, de 84 anos. Uma senhora bem-disposta, que embora emocionada com as últimas notícias da pandemia, não perde a vontade de todos os dias entregar-se às suas rotinas como fazer o almoço, dedicar-se à horta e rezar. Quando chegamos pergunta por outros elementos da GNR que no dia da nossa reportagem não faziam parte da comitiva, mas que integram este projeto. Ao lado da sua casa vive a irmã, que se junta à conversa – “Ela quer é visitas!”. Todos riem. “Estes senhores são grandes amigos que eu aqui tenho. Não são guardas, são amigos”, declara à nossa reportagem ao referir-se aos elementos da GNR de Alenquer. A única coisa que a incomoda é a perna. Teve um cancro que conseguiu debelar e vai seguindo a vida com otimismo– “Cá andamos até Deus querer!”. O marido faleceu no ano passado. Foram 58 anos de união, e veio viver para Alenquer depois de casada já que é oriunda de Sabugal mas nunca perdeu o sotaque da sua terra. Vive sozinha e diz que não é preciso mais ninguém – “Vivo com Deus, com uma gata e três galinhas”. Com a pandemia não voltou a visitar a campa do marido no cemitério, mas para Leonor Abrantes “ele não morreu é como se estivesse vivo”. “Esteve acamado durante cinco anos, e tratei-o como se fosse um menino, fazia-lhe toda a higiene”, diz-nos. Toda a vida conheceu o marido, que era vizinho de infância, e ao qual se refere como “o maior amigo” que teve na vida. Restam-lhe as duas filhas, “que são dois grandes amores” que a vão visitando.
Desde que se começou a ouvir falar do vírus que nunca mais saiu de casa, a não ser para ir despejar o lixo e bem cedo. “Não vejo, nem me cruzo com ninguém”, mas confessa que não tem medo. “Será o que Deus quiser!”. Também recebeu material de proteção através do município.
Equipa que esteve no terreno no dia da nossa reportagem
Passa parte do dia a ouvir o terço na rádio e quando vê televisão fica com muita pena das vítimas da pandemia – “Choro muito porque o meu marido também esteve a oxigénio antes de morrer”. Despede-se de nós bem-disposta dizendo que não gosta que a tratem por dona Leonor, prefere apenas Leonor “porque o nome é bonito, e eu também sou bonita”, ri-se.