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Nelson Marçal, médico pneumologista, no Hospital de Vila Franca de Xira tem sido um dos clínicos que tem convivido mais de perto com as situações de infeção por Covid-19 naquela unidade hospitalar. Ao Valor Local, e numa altura, em que já passaram cinco meses da entrada do vírus em Portugal, coloca o acento tónico na prevenção e nos comportamentos responsáveis como o uso de máscara e o distanciamento social.
O clínico traça um paralelismo com a teoria da evolução das espécies de Darwin - “O vírus SARS-Cov2 pertencente à família dos coronavírus conseguiu transpor a barreira dos seus reservatórios animais e criar condições para infetar, replicar-se e propagar-se entre os seres humanos. Trata-se de um somatório de mutações que, tal como nos dizia Darwin com o seu conceito de seleção natural, vai favorecer os que melhor se adaptam ao meio e não necessariamente os mais fortes. É um conceito fascinante que só comprova um mundo em permanente mudança.” De um ponto de vista “prático e imediato”, na sua opinião, importa, neste momento, conter surtos ativos como forma de limitar a propagação da doença para evitar cenários como os de Espanha e Itália (que ainda estão presentes na nossa memória) “onde os recursos existentes para tratar os doentes com a Covid-19 estavam em rutura, sendo por isso importante que quem esteja saudável não se torne vetor de transmissão da doença.” Muito falada tem sido a hipótese de uma segunda vaga refere Nelson Marçal que é algo que pode ser uma realidade, mas ao mesmo tempo é um conceito vago. Sobretudo interessa-lhe colocar o acento tónico nas repercussões psicológicas da doença “que já se verificam atualmente a vários níveis”. O médico vai mais longe: “Não é possível conceber separar os avós dos netos ou dos filhos. Não podemos admitir que os lares de idosos ou as unidades de convalescença ou paliativos considerem exequível manter os seus utentes em quarentena (ou na "solitária") de cada vez que lá entram ou por terem de ir a uma simples consulta hospitalar”. Muito crítica tem sido, ainda, a situação dos doentes internados que se vêm privados do contacto com os seus familiares. Neste contexto, muitos doentes em estado terminal têm partido com uma cortina a separá-los dos familiares, “sem lhes poder agarrar na mão”, e se “continuarmos a compactuar com isto estamos a permitir que se roube a dignidade humana a quem se encontra na reta final da sua vida”. Num futuro próximo, o grande desafio que se põe à comunidade médica serão os meses de, porque teremos, ainda, a Covid misturada com outras infeções respiratórias no mesmo Serviço Nacional de Saúde (SNS) “enfraquecido e sobrelotado onde será mais difícil a manutenção de circuitos de doentes separados”. O médico é perentório – “Os recursos em saúde não se esgotam na aquisição de mais ventiladores mas sim no fortalecimento em número e na motivação dos profissionais que com eles trabalham”. Num futuro mais longínquo, refere que o nosso sistema imunitário terá de aprender “a conviver com este vírus tal como acontece a milhares de outros vírus quer seja com vacina ou sem ela”. Nelson Marçal fala em meses intensos no hospital de Vila Franca. A doença apresenta manifestações muito díspares à medida que vai evoluindo. Todos os dias a ciência traz a lume novos dados, e se numa fase inicial não passa de uma simples infeção viral, na segunda semana “aí a doença distancia-se de tudo o que até aqui conhecíamos pois a sua evolução, quando se complica, é rápida a evoluir para falência respiratória e necessidade de ventilação mecânica o que limita a nossa capacidade de reagir”. Os anglo-saxónicos cunharam estes doentes como portadores de hipoxemia alegre ou seja “há por vezes uma dissociação entre os poucos sintomas apresentados e a gravidade da insuficiência respiratória que nunca tinha sido visto até agora”. A falta de uma terapêutica válida e eficaz também se torna angustiante para “quem trata estes doentes”, refere. A doença por ser nova não permite uma visão adequada da mesma, ou seja, “no olho do furacão não conseguimos ter a noção da gravidade de uma tempestade”, diz o médico quando lhe colocamos a questão quanto ao facto de a Covid-19 ter evoluído, segundo a comunidade científica, de uma doença respiratória para algo que afeta todo o sistema imunitário. Quanto mais se conhece da doença mais se fica a perceber que a falta de olfato, a dor abdominal nos jovens ou manifestações cutâneas fazem também parte dos sintomas desta doença. Quanto à vacina ou a descoberta de uma terapêutica com sucesso, fala-se da hidroxicloroquina e da dexametasona, entre outras, mas não arrisca previsões. Mais importante do que isso é que “a indústria farmacêutica está focada em obter uma vacina eficaz pelo que esta união de esforços trazer-nos-á benefícios seguramente”. Quanto aos medicamentos para o seu tratamento “é um tema mais complexo na medida em que faltam ensaios clínicos estruturados que demoram muitos meses a preparar”. Daquilo que já viu até agora, já se perdeu o entusiasmo pelo lopinavir/ritonavir e hidroxicloroquina. Tradicionalmente as infeções virais agudas não têm tratamentos muito eficazes pelo que a Covid não é exceção. No seu entender, seria mais importante, nesta fase, “determinar quais as características ou os marcadores que identificariam os doentes cujo curso de doença evoluiria para a falência respiratória de forma a serem precocemente tratados, e também a determinação serológica de anticorpos que permitisse avaliar quem estaria ou não imune à doença.” No seu entender, Portugal tem respondido à altura na crise Covid-19 a nível do Serviço Nacional de Saúde mais por brio dos seus profissionais extensível ao setor privado, do que pelos esforços dos sucessivos governos, dado que o setor público sofre de um desinvestimento crónico que se acentuou com a crise de 2011. Os médicos portugueses, na sua opinião, têm conseguido fazer muito com poucos instrumentos ao seu alcance. Nelson Marçal acredita que está nos genes portugueses aquele espírito do "desenrasca" que “nos permite reagir em situações de stress de uma forma mais eficaz do que outros países e assim unimos esforços entre o sector público e privado para arranjar as melhores soluções.” Tem sido comum entre os indivíduos que contraem a doença testar positivo e negativo de forma intermitente, o que acaba por ser algo extenuante e que deixa as suas vidas num impasse, obrigados por vezes a um confinamento sem dia para acabar. Nelson Marçal avalia assim a volatilidade, grosso modo, das zaragatoas, ao explicar que o teste de confirmação da doença baseia-se atualmente na identificação do vírus em amostras da naso e orofaringe. “É um teste muito específico (o que quer dizer que os positivos têm mesmo a doença) mas pouco sensível (quer isto dizer que um resultado negativo não é sinónimo de não ter doença). A existência de teste negativo entre dois testes positivos é resultado das características que descrevo.” Face ao facto de, em muitos casos, a Covid-19 ter uma evolução e um desfecho críticos para o doente, questionamos o médico se não se recorrerá em demasia ao método assistencial via Saúde 24, mas este refere que “é incomportável seguir estes doentes de outra forma”. Na sua maioria, os doentes não têm problemas no início da doença, a altura crítica é mesmo entre o oitavo e o décimo dia após início de sintomas. “Infelizmente ainda não descobrimos quais as características ou marcadores que nos permitam conhecer antecipadamente os doentes com desfecho mais grave”, realça. A regra do distanciamento social
Quem não consegue fugir dos ajuntamentos, seja por via dos transportes públicos ou outras situações, a regra continua a ser: distanciamento social, máscara, álcool gel quando não puder lavar as mãos ou poderá dar mais conselhos? Infelizmente não há mais nada que possamos fazer. Penso que devíamos, enquanto sociedade, promover o teletrabalho, sempre que possível, pois é benéfico para o trabalhador e reduz custos à entidade empregadora. Não só deviam ser fortalecidos os transportes públicos como se deviam reduzir as penalizações a quem vai de transporte próprio neste período de pandemia. É mais provável que eu apanhe e doença numa ida sozinha, com máscara e munida de álcool gel, ao supermercado e praticando distanciamento social, mas onde é impossível deixar de mexer em algumas superfícies, carrinhos de compras, alimentos, e caixa (e não sabemos até que ponto o álcool gel que vou pondo até sair do supermercado é eficaz) ou numa confraternização com meia dúzia de amigos num jantar em minha casa, todos sem máscara e sem distanciamento social? Do meu ponto de vista, os momentos sociais são sempre mais perigosos uma vez que no supermercado a ideia é "despachar isto para sair rápido" e nos nossos momentos sociais achamos sempre que os nossos amigos e familiares não têm a doença e por isso mesmo é mais fácil "baixar a guarda". Tendo em vista o próximo inverno e nem que seja por uma questão psicológica é importante que tomemos a vacina da gripe, não vá existir alguma confusão de sintomas e pensarmos que temos Covid quando não passa de mais uma gripe sazonal? Nem mais! Os grupos de risco são sempre as pessoas com mais de 65 anos, doentes crónicos ou profissionais de saúde. A vacina da gripe é sem dúvida uma das estratégias com maior custo-benefício em saúde pública a salvar vidas. Ela não impede que a pessoa desenvolva gripe uma vez que a estirpe desse ano não está contida na vacina por razões óbvias mas leva a quadros menos graves e impede que se desenvolva pneumonia pós-gripe e que tem uma elevada mortalidade. Tendo em conta a sua experiência, e de forma a consciencializar quem nos lê, que tipo de sequelas é que já presenciou nos pacientes que tem acompanhado no pós doença Este é um tema muito delicado e que, na nossa região, fruto do surto a Legionella em 2014, ainda hoje continua a levantar algumas questões pela noção de sequela. Para definirmos sequela temos de conhecer os doentes antes da infeção para conseguirmos ter termo de comparação. Ora isso é, na grande maioria dos casos impossível. Não há ainda muitos dados sobre este tema e teremos de aguardar a sua chegada. Na maioria dos casos não haverá sequelas orgânicas, exceto nos doentes que estiveram internados em Unidades de Cuidados Intensivos, sobretudo os que estiveram dependentes de um ventilador. Já quanto a sequelas psicológicas/psiquiátricas de quarentenas, isolamentos, separações e "solitárias" penso que serão muitas. |
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Muito bem Dr.Nélson!
Elena Raymundo
Arruda dos Vinhos
14/08/2020 13:13
Excelente artigo!
Devia ser lido por todos, principalmente pelo governo portugues que para vergonha nossa , nao investe tudo o que deve na saude e na investigacao cientifica!
Bem Haja,
Ana Silva
Portugal
14/08/2020 18:00
Bastante esclarecedor.
Obrigada!
Ana Torres
Oeiras
14/08/2020 10:03
Adorei parabéns pela partilha
Obrigada
Angelina Marques
Torres Vedras
14/08/2020 00:57
Estou de acordo em relação ao distanciamento que está a ser feito aos nossos familiares nos lares. Se eles já têm de estar fechados e nem sequer vêm a família, é de uma solidão enorme e afecta mto, psicologicamente. Ficam mais tristes. Em relação aos avós também concordo. Daqui a pouco as famílias não se encontram, parecemos robots. Estou muito desolada com os comportamentos das pessoas e se não morremos do COVID, morremos de tristeza.
Anabela Santos
Lisboa
13/08/2020 22:00
Artigo muito esclarecedor. Não restam dúvidas, que a luta a este vírus, se deve à incansável dedicação dos profissionais de saúde, sem meios, tantas vezes, para evitar tragédias maiores. À politica, deve-se a confusão e teimosia instaladas, com informações contraditórias, que levaram a este estado da situação. Conclu-o afirmando que o sucesso só se verificará, se a população tomar consciência quão nefasto é este vírus, e colaborar, evitando exposição que produza mais contágios. Especialmente os chamados "jovens", a quem a política vendeu o passaporte da imunidade....
João Gomes
Lisboa
13/08/2020 10:45
EXCELENTE artigo, deveria ser lido por todos.
O impacto da doença na saúde mental vai ser tão devastador como a doença o foi em Itália ou em Espanha, só que a progressão é perigosamente silenciosa. Isto tem de ser urgentemente pensado e as decisões relativas ao ano escolar que se aproxima reformuladas. Um ano na vida duma criança ou dum adolescente é muito tempo. Afastá-los dos seus pares vai agravar muito aquilo que já era um problema de relação interpessoal e de abandono e insucesso escolar.
Um ano na vida de um idoso é muito tempo. Acrescentar solidão à que já existe é devstador.
Como psiquiatra, assisto agora pessoas que aguentaram estoicamente estes meses, mas estou certa de que a resiliência tem limites e que estes já estão à vista.
Ana Santa-Clara
Lisboa
13/08/2020 02:37
Muito bom mesmo
Ana Mendes
Lisboa
13/08/2020 00:47
Elena Raymundo
Arruda dos Vinhos
14/08/2020 13:13
Excelente artigo!
Devia ser lido por todos, principalmente pelo governo portugues que para vergonha nossa , nao investe tudo o que deve na saude e na investigacao cientifica!
Bem Haja,
Ana Silva
Portugal
14/08/2020 18:00
Bastante esclarecedor.
Obrigada!
Ana Torres
Oeiras
14/08/2020 10:03
Adorei parabéns pela partilha
Obrigada
Angelina Marques
Torres Vedras
14/08/2020 00:57
Estou de acordo em relação ao distanciamento que está a ser feito aos nossos familiares nos lares. Se eles já têm de estar fechados e nem sequer vêm a família, é de uma solidão enorme e afecta mto, psicologicamente. Ficam mais tristes. Em relação aos avós também concordo. Daqui a pouco as famílias não se encontram, parecemos robots. Estou muito desolada com os comportamentos das pessoas e se não morremos do COVID, morremos de tristeza.
Anabela Santos
Lisboa
13/08/2020 22:00
Artigo muito esclarecedor. Não restam dúvidas, que a luta a este vírus, se deve à incansável dedicação dos profissionais de saúde, sem meios, tantas vezes, para evitar tragédias maiores. À politica, deve-se a confusão e teimosia instaladas, com informações contraditórias, que levaram a este estado da situação. Conclu-o afirmando que o sucesso só se verificará, se a população tomar consciência quão nefasto é este vírus, e colaborar, evitando exposição que produza mais contágios. Especialmente os chamados "jovens", a quem a política vendeu o passaporte da imunidade....
João Gomes
Lisboa
13/08/2020 10:45
EXCELENTE artigo, deveria ser lido por todos.
O impacto da doença na saúde mental vai ser tão devastador como a doença o foi em Itália ou em Espanha, só que a progressão é perigosamente silenciosa. Isto tem de ser urgentemente pensado e as decisões relativas ao ano escolar que se aproxima reformuladas. Um ano na vida duma criança ou dum adolescente é muito tempo. Afastá-los dos seus pares vai agravar muito aquilo que já era um problema de relação interpessoal e de abandono e insucesso escolar.
Um ano na vida de um idoso é muito tempo. Acrescentar solidão à que já existe é devstador.
Como psiquiatra, assisto agora pessoas que aguentaram estoicamente estes meses, mas estou certa de que a resiliência tem limites e que estes já estão à vista.
Ana Santa-Clara
Lisboa
13/08/2020 02:37
Muito bom mesmo
Ana Mendes
Lisboa
13/08/2020 00:47
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