Segredos da Justiça
O caso da divorciada casada que era viúva
Por António Jorge Lopes, advogado
Em 20 anos de advocacia enfrentei diversos desafios, mas poucos foram tão intrincados como o do caso que vou contar, que ocorreu há cerca de 8/9 anos,. Como é óbvio, os nomes são fictícios.
A D. Maria e o Tio António casaram em Portugal e depois emigraram para França. O amor esvaíu-se e acabaram por divorciar-se num tribunal francês e de acordo com a lei francesa. Depois do divórcio, o Tio António regressou a Portugal, onde acabou por falecer. Por seu lado, a D. Maria reencontrou o amor e como mulher divorciada que era voltou a casar em França, desta feita com um cidadão gaulês, que vamos chamar de Pierre.
Um dia a D. Maria veio a Portugal de férias e quis aproveitar para renovar o seu bilhete de identidade. Quando foi à Conservatória do Registo Civil a D. Maria descobriu que era viúva e que qualquer renovação do seu documento de identificação teria de conter a menção do estado civil de viuvez – a D. Maria era viúva, viúva do seu primeiro marido, aquele de quem se tinha divorciado! A D .Maria não queria ser viúva (até porque estava bem casada com o francês Pierre) e foi por isso que o caso chegou às minhas mãos.
Do ponto de vista jurídico, foi fácil identificar o problema que originou esta confusão de estados civis: o divórcio concretizado em França não produzia efeitos em Portugal, porque nem a D. Maria nem o Tio António tinham intentado uma acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, neste caso da sentença de divórcio do tribunal francês.
Deste problema resultou um segundo: sem a confirmação portuguesa da sentença francesa, os serviços do Registo Civil não podiam averbar o divórcio quer nos assentos de nascimento, quer no assento de casamento da D. Maria e do Tio António.
Nos termos da lei portuguesa, esta acção especial tem de ser proposta junto do Tribunal da Relação competente e, no caso concreto, teria de ser apresentado pela D. Maria contra o Tio António. Mas, recorde-se, o Tio António já tinha morrido! Como poderia ele defender-se da acção intentada pela D. Maria? A esta pergunta todos os colegas a quem pedi opinião diziam-me: “Ponha a acção contra os herdeiros do Tio António!”. Nessa altura, eu respondia sempre: “Só há duas herdeiras, a D. Maria e a filha. E a D. Maria não pode ser Autora e Ré no mesmo pedido processual…”. Na réplica, apenas me garantiam que “Isto não tem solução”…
Depois de estudar várias hipóteses (algumas bem absurdas), pesar prós e contras, defini uma estratégia processual de risco, mas que foi a única que me parecia viável. Assim, avancei com a acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, tendo como Autora a D. Maria e como Réu o falecido Tio António. Antes que o Tribunal da Relação fosse notificado que o Tio António já tinha morrido, dei conhecimento desse facto ao tribunal. De seguida, tal como tinha previsto, fui notificado para deduzir um incidente de habilitação de herdeiros (que é o meio processual próprio para chamar herdeiros a um processo). No requerimento subsequente identifiquei as duas herdeiras do Tio António (a sua filha e a sua viúva) e “disparei” um conjunto de argumentos que procuravam demonstrar que a D. Maria não podia ser reconhecida como herdeira do Tio António, sob pena de ser Autora e Ré no mesmo pedido processual. A par desta linha de raciocícinio, apresentei uma segunda: se a acção fosse arquivada por causa da D. Maria não poder acumular a posição de Autora e Ré no mesmo pedido processual, então a D. Maria seria viúva em Portugal e casada em França, o que devirtuaria todo o espírito da lei.
O Tribunal da Relação reconheceu o absurdo de toda a situação e julgou excepcionalmente que a D. Maria não podia ser herdeira do Tio António e que, para efeitos deste processo, aquele apenas tinha uma herdeira – a sua filha, que não contestou a acção proposta. Uma vez que não existiu contestação da outra parte processual, o Tribunal da Relação confirmou a sentença francesa que decretou o divórcio da D. Maria e do Tio António. Em conformidade, os serviços do Registo Civil atualizaram os respetivos assentos de nascimento e de casamento.
Foi um verdadeiro caso intrincado, mas hoje a D. Maria já tem um documento de identificação português com o estado civil de casada.
07-07-2015
O caso da divorciada casada que era viúva
Por António Jorge Lopes, advogado
Em 20 anos de advocacia enfrentei diversos desafios, mas poucos foram tão intrincados como o do caso que vou contar, que ocorreu há cerca de 8/9 anos,. Como é óbvio, os nomes são fictícios.
A D. Maria e o Tio António casaram em Portugal e depois emigraram para França. O amor esvaíu-se e acabaram por divorciar-se num tribunal francês e de acordo com a lei francesa. Depois do divórcio, o Tio António regressou a Portugal, onde acabou por falecer. Por seu lado, a D. Maria reencontrou o amor e como mulher divorciada que era voltou a casar em França, desta feita com um cidadão gaulês, que vamos chamar de Pierre.
Um dia a D. Maria veio a Portugal de férias e quis aproveitar para renovar o seu bilhete de identidade. Quando foi à Conservatória do Registo Civil a D. Maria descobriu que era viúva e que qualquer renovação do seu documento de identificação teria de conter a menção do estado civil de viuvez – a D. Maria era viúva, viúva do seu primeiro marido, aquele de quem se tinha divorciado! A D .Maria não queria ser viúva (até porque estava bem casada com o francês Pierre) e foi por isso que o caso chegou às minhas mãos.
Do ponto de vista jurídico, foi fácil identificar o problema que originou esta confusão de estados civis: o divórcio concretizado em França não produzia efeitos em Portugal, porque nem a D. Maria nem o Tio António tinham intentado uma acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, neste caso da sentença de divórcio do tribunal francês.
Deste problema resultou um segundo: sem a confirmação portuguesa da sentença francesa, os serviços do Registo Civil não podiam averbar o divórcio quer nos assentos de nascimento, quer no assento de casamento da D. Maria e do Tio António.
Nos termos da lei portuguesa, esta acção especial tem de ser proposta junto do Tribunal da Relação competente e, no caso concreto, teria de ser apresentado pela D. Maria contra o Tio António. Mas, recorde-se, o Tio António já tinha morrido! Como poderia ele defender-se da acção intentada pela D. Maria? A esta pergunta todos os colegas a quem pedi opinião diziam-me: “Ponha a acção contra os herdeiros do Tio António!”. Nessa altura, eu respondia sempre: “Só há duas herdeiras, a D. Maria e a filha. E a D. Maria não pode ser Autora e Ré no mesmo pedido processual…”. Na réplica, apenas me garantiam que “Isto não tem solução”…
Depois de estudar várias hipóteses (algumas bem absurdas), pesar prós e contras, defini uma estratégia processual de risco, mas que foi a única que me parecia viável. Assim, avancei com a acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, tendo como Autora a D. Maria e como Réu o falecido Tio António. Antes que o Tribunal da Relação fosse notificado que o Tio António já tinha morrido, dei conhecimento desse facto ao tribunal. De seguida, tal como tinha previsto, fui notificado para deduzir um incidente de habilitação de herdeiros (que é o meio processual próprio para chamar herdeiros a um processo). No requerimento subsequente identifiquei as duas herdeiras do Tio António (a sua filha e a sua viúva) e “disparei” um conjunto de argumentos que procuravam demonstrar que a D. Maria não podia ser reconhecida como herdeira do Tio António, sob pena de ser Autora e Ré no mesmo pedido processual. A par desta linha de raciocícinio, apresentei uma segunda: se a acção fosse arquivada por causa da D. Maria não poder acumular a posição de Autora e Ré no mesmo pedido processual, então a D. Maria seria viúva em Portugal e casada em França, o que devirtuaria todo o espírito da lei.
O Tribunal da Relação reconheceu o absurdo de toda a situação e julgou excepcionalmente que a D. Maria não podia ser herdeira do Tio António e que, para efeitos deste processo, aquele apenas tinha uma herdeira – a sua filha, que não contestou a acção proposta. Uma vez que não existiu contestação da outra parte processual, o Tribunal da Relação confirmou a sentença francesa que decretou o divórcio da D. Maria e do Tio António. Em conformidade, os serviços do Registo Civil atualizaram os respetivos assentos de nascimento e de casamento.
Foi um verdadeiro caso intrincado, mas hoje a D. Maria já tem um documento de identificação português com o estado civil de casada.
07-07-2015
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