O Mundo dentro da Prisão de Alcoentre

Secção de pintura do estabelecimento
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“O crime não compensa, mesmo!”. Esta é uma daquelas frases batidas, mas que no caso de Paulo, 36 anos, natural dos Açores, e a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Alcoentre assenta que nem uma luva, pelo menos é o que nos garante. A droga é que o levou a cumprir pena. “A minha vida estava mais ou menos estabilizada, mas cometi um erro e vim cá parar. Caí na burrice de experimentar as drogas pesadas, para manter o meu consumo fui obrigado a vender-me”. Tem preenchido os seus dias a tirar um curso profissional de mecânica automóvel que lhe pode dar acesso ao mercado de trabalho uma vez em liberdade. Contudo, adianta que já tem uma vacaria montada pelo pai à sua espera na terra natal, e o curso tirado em Alcoentre pode ajudar “na manutenção das máquinas” da empresa. As saudades são muitas, e as visitas poucas, dada a distância.

“É sempre importante aprender coisas novas, e estes cursos são fundamentais, tirei o nono ano”. Há um ano e quatro meses a cumprir pena em Alcoentre, espera sair em 2017. “Espero que isso aconteça, não me tenho metido em barulhos, e porto-me razoavelmente bem”. Para já tem a primeira condicional em novembro- “Quero ver se vou a casa no Natal, tenho dois filhos, um de cinco e outro de 15, e não os vejo há algum tempo. O meu mais velho quer ser músico, já atuou em Coimbra”, diz orgulhoso.

À semelhança de Paulo, grande parte da população prisional de Alcoentre, composta por 600 reclusos, pratica atividades nos cursos de formação profissional, nas atividades de agropecuária, mas também na serralharia, entre outras. Para além de lhes proporcionar alguma autonomia, e ajudar a passar as longas horas na prisão, também lhes pode abrir portas uma vez em liberdade. Ainda a nível das atividades agrícolas e para além da vinha onde é produzido o já muito afamado vinho desta prisão, o Chão de Urze, há uma horta cujos produtos são destinados ao Banco Alimentar de Santarém, onde são produzidos tomate, courgette e abóbora.

João e Ivo Rafael, à semelhança de Paulo, também se encontram na oficina automóvel, e confiam que uma vez em liberdade poderão ter alguma possibilidade no mercado de trabalho graças ao curso. E até contestam o facto de nos últimos tempos, a grave dos guardas prisionais ter afetado o normal curso das aulas. “As mudanças de horário fazem com que tenhamos de faltar algumas aulas”, diz João. “Este curso de dois anos permitiu-me tirar o nono ano e ter acesso a uma profissão. Gostava muito de trabalhar nesta área se me derem emprego”. Ivo Rafael também é da mesma opinião – “Sem dúvida que gostava muito, porque sempre gostei desta área, pessoas da minha família já trabalham neste ramo, ganhei experiência”. Falta-lhe um ano para cumprir pena- “Este curso foi um achado para mim”. O mesmo é cumprido ao abrigo do Centro Protocolar de Formação Profissional para o Setor da Justiça.

“É essencial para os presos que cá estão que cumpram hábitos de trabalho, e horários, que são importantes para a sua reinserção lá fora”, refere António Leitão, diretor da cadeia, tendo em conta que muitos dos presos foram ali parar porque nunca deram valor ao trabalho, e acabaram atrás das grades devido a episódios de furtos, por exemplo.

O Valor Local percorreu os diversos corredores do Estabelecimento Prisional de Alcoentre desde as salas de aula onde a população pode terminar os estudos, até à cantina nova, pronta a estrear, que espera por melhores dias para ser inaugurada finalmente, isto na nova ala recentemente inaugurada. As celas deste estabelecimento já eliminaram definitivamente o balde higiénico que acabou no sistema prisional. Numa das celas, um placard de cortiça com muitas fotos da família de um recluso e uma pequeno televisor ajudam a passar os dias e trazem um pouco do mundo de fora para o interior da cadeia. António Leitão refere que todos podem trazer aquele eletrodoméstico para as suas celas. Contudo, a internet está vedada. A célebre solitária também tem um aspeto mais simpático do que aquele que vemos nos filmes- Em quase tudo idêntica às celas normais, mas neste caso, os reclusos não podem trazer televisão. Trata-se de uma divisão assética mas onde a luz do sol entra. Vão para estas celas, os presos que “se portam mal”. Em média, cumprem no máximo cerca de 20 dias nestes compartimentos. Há também uma sala de visitas grande, em que à volta de pequenas mesas, o recluso recebe a visita dos seus familiares, revistos à entrada através de aparelhos eletrónicos e apalpação. Um dos guardas confidenciou à nossa reportagem. “Por vezes dizem que nós deixamos passar pessoas com droga, mas não há maneira de controlar isso por completo, há senhoras que até a trazem na vagina, e mesmo com câmaras na sala, conseguem fazer passar o produto”.

Pelos corredores deste estabelecimento vêm-se homens de todas as idades, alguns mais velhos têm toda uma “carreira” ligada ao crime, outros foram traídos pelas circunstâncias da vida e pela mente na hora errada, e cometeram o erro de matar um vizinho, ou a mulher. Em média, os reclusos da prisão de Alcoentre têm uma pena média para cumprir entre cinco a dez anos. Trata-se de um estabelecimento destinado a acolher a média criminalidade. Mas há também alguns casos de presos por crimes sexuais, neste caso a direção tenta mantê-los um pouco mais à parte de outros presos, pois práticas de violação ou pedofilia “são muito mal vistas por outros reclusos”. António Leitão diz mesmo que, por vezes, um assassino que comete um crime passional é melhor encarado do que um criminoso sexual.

Pelos corredores, António Leitão é tratado por “senhor doutor” pelos presos, e durante esta reportagem não raras vezes é abordado por um outro recluso que lhe pergunta sobre o andamento dos processos. Há quem se queixe do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, outros da pressa que têm em aceder à liberdade condicional, por exemplo.

A prisão de Alcoentre é em si mesma um mundo. Desde o ginásio à lavandaria passando pelos serviços clínicos, parque oficinal, armazém, é uma espécie de cidade em miniatura. Simão Garcia, é um dos civis que trabalha com os presos na secção de serralharia, e entende a experiência como positiva – “Aprendemos sempre alguma coisa com eles, já passaram por aqui bons profissionais, que normalmente agradecem esta oportunidade”. Nesta cadeia, os presos têm acesso a médico de clínica geral, estomatologista, psiquiatra, psicólogo entre outras especialidades. Funciona uma escola com seis salas, com horários e programas como lá fora, com protocolos com a escola de Rio Maior. Cerca de 150 reclusos frequentam o ensino no estabelecimento. Trabalham mais de 200 pessoas na prisão.

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Os amantes do artesanato também têm um espaço próprio. Numa sala, fomos encontrar três homens que se dedicam- todos os dias a fabricar desde caixinhas feitas com papel de jornal destinadas às jóias das senhoras, até quadros, e telhas pintadas que refletem a luz fazendo um bonito candeeiro improvisado, com motivos desde animais a flores. As peças são vendidas aos visitantes, e um deles à nossa reportagem demonstra “pena” por ainda não terem conseguido uma loja que adquira e venda as suas peças. Sentem-se valorizados, e o tempo não custa a passar.

“Através de papel do jornal, fazemos um pequeno rolo, aplicamos a cor que desejamos, leva um endurecedor, o verniz e o desenho escolhido, recorrendo a técnicas de craquelê. Demoro a fazer esta caixinha cerca de quatro dias”, refere um recluso que nunca tivera a oportunidade de fazer este este tipo de trabalho antes de vir para Alcoentre. E vai mostrando todas as suas pequenas obras. Este ateliê é dominado por uma profusão de materiais reciclados, onde tudo se aproveita até tubos de papel higiénico. “Estou aqui há dois anos, o trabalho na oficina ajuda a passar o tempo, embora seja das poucas coisas que posso fazer, pois foi-me diagnosticado cancro. Tenho também hérnia e sou cardíaco, não posso fazer tarefas muito duras, tomo 30 comprimidos por dia. Estou proibido de pegar em pesos, já tive muita sorte em o senhor diretor me ter deixado vir para aqui.” “Acaba por ser terapêutico”, junta António Leitão. “Adoro fazer isto, passo aqui a vida”. Um colega de prisão peruano desenhou-lhe entretanto o retrato de uma das netas, que será agora colocado numa moldura. Reclusos, diretor e guardas que se juntaram nesta sala gabam o jeito do cidadão estrangeiro. “Bastou dar-lhe a fotografia dela”, concordam.

As vendas revertem a favor dos reclusos, neste como nos outros trabalhos remunerados existentes na prisão, metade das verbas vai para uma espécie de pé-de-meia ao qual só podem aceder uma vez em liberdade, a outra metade serve para comprarem o que precisam a nível de bens de consumo acessíveis numa loja no interior da prisão.

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Numa das extremidades do complexo prisional, um conjunto de pré-fabricados alberga os reclusos em regime aberto. Alguns trabalham fora dos muros da prisão em atividades de limpeza em colaboração com autarquias da zona, ou nas atividades ao ar livre da prisão. No total, cerca de 40 a 50. Os quartos são triplos, e num deles fomos encontrar António, de 58 anos, de Azambuja. Na cadeia entrega-se às funções de limpeza dos espaços. Quase a acabar a pena, todos os meses vai a casa para depois regressar. A família já nem o visita, tendo em conta que as precárias se têm sucedido. “Já estou na cadeia há quatro anos”, refere. No regime aberto, “a malta está mais junta, temos mais um bocadinho de tudo, e só o fato de irmos mais vezes a casa ainda é melhor”. Os dias não custam tanto a passar desde que foi para os pavilhões, porque “nas alas era muito pior”. “De manhã faço as limpezas, à tarde vou apanhar sol, ou faço uma sestada, ou então opto por ler um bocado ou ver televisão”. Diz que não conta os dias para ir a casa, como se já fosse uma rotina quase banal entrar e sair quase todos os meses ou de dois em dois meses. Quando se lhe pergunta se fez amigos na prisão, responde – “Aqui não há amigos, só conhecidos ou os chamados amigos de ocasião”.

No final da visita, o Valor Local esteve na menina dos olhos do estabelecimento, a vinha onde é produzido o “Chão De Urze”, bem afamado, que passa pelas mãos dos reclusos desde a apanha da uva até ao seu embalamento. Em 2012, um dos melhores anos, produziu-se 170 mil litros, mas num ano normal chega aos 120 mil. “O trabalho na agricultura pode tornar-se numa porta aberta uma vez lá fora, pois ficam com uma ideia como se faz fertilização de solos, podas, vindimas. Como há falta de mão-de-obra para a agricultura, tal poderá ser uma saída”, refere José Narciso, formador de operador agrícola.

A vasta complementaridade de atividades aliada às produção animal, e agrícola, sobretudo os vinhos faz com que este estabelecimento seja o que a nível do país apresente uma faturação superior, cerca de 150 mil euros anuais. “A nossa principal fonte de receitas vem de facto do vinho, diversificámos este setor com brancos, rosés, tintos, brandys”, diz António Leitão.

Mesmo junto à cadeia, outro grupo de reclusos tomava conta de um grupo de vacas, por sinal amistosas. “Até lhes damos a comida à boca”, referiu um deles. Desde 2013, a cumprir pena em Alcoentre, Paulo, 39 anos, licenciado em Design, nunca imaginou vir parar a uma prisão. Sem querer adiantar os motivos para tal, refere que também fez atividades de limpeza na enfermaria e na escola da prisão. “Vamos para a rua às 8h45 e voltamos ao fim da tarde”, refere. Faltam oito meses para acabar a pena, e em princípio tem um trabalho à sua espera. “Não me vou meter de certeza em mais nenhuma alhada lá fora, porque estar aqui não é uma experiência bonita, o que tem de bom é que conseguimos ocupar o tempo com várias atividades”.

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António Leitão, diretor da cadeia há 5 anos

“É impossível controlar a 100 por cento a entrada de droga”


Recentemente uma estação de televisão fez uma reportagem que dava conta da entrada fácil de estupefacientes na cadeia de Alcoentre, alegando que no interior da mesma facilmente os reclusos faziam grandes regabofes e o acesso a telemóveis era fácil, tudo mais ou menos com a conveniência de um ou outro guarda prisional. Acerca desta reportagem, o diretor refere que “todos os dias são efetuadas buscas, ou devido a algum comportamento suspeito, ou porque essa informação nos foi transmitida”. Assegura ainda que no que toca a droga e a telemóveis, “os números das apreensões são significativos”. Contudo refere que o regime aberto em que estão alguns reclusos pode facilitar a entrada de matéria proibida, “não deixando esses reclusos de serem submetidos a testes com muita regularidade”. “Por outro lado, os métodos de introdução estão cada vez mais sofisticado, nomeadamente, através do corpo, quer quando as pessoas vão a casa, ou nas visitas. Os reclusos podem ser revistados pormenorizadamente, mas os familiares não, até porque estamos a falar de zonas íntimas.” Contudo salvaguarda – “O que se passa aqui não é muito diferente do que se passa noutros estabelecimentos. É uma luta diária na tentativa de se controlar o que aqui vem parar, mas sabendo sempre que os estupefacientes não vão deixar de entrar”.

António Leitão não tem dúvidas – “Onde houver um consumidor, a droga chegará lá! Porque os traficantes vão arranjar uma forma de o fazer. Em Portugal e em nenhuma parte do mundo há sistemas que impeçam a cem por cento isso”. O facto de o nosso sistema apostar na humanização da relação com os reclusos, pode ser mais permissivo. “Por muito que se queira combater, os reclusos vão fazer de tudo para arranjar uma forma de driblar o sistema, contudo posso dizer que não negando a existência de consumos no interior da cadeia, são em muito menor quantidade do que há mais anos atrás”. “Comparativamente com outras épocas, via-se mais indivíduos com elevada dependência de droga e isso era notório nas cadeias, mas atualmente os mesmos são muito mais baixos. As situações sinalizadas pelos serviços clínicos dão conta disso mesmo. É impossível banir a droga das prisões”.

Por outro lado, refere que a proximidade em relação à estrada, dá azo a que amigos ou familiares de detidos arremessem produtos ilícitos para os reclusos do regime aberto. 

Portugal foi o primeiro país do mundo a abolir a pena de morte, e o regime das prisões portuguesas é mais suave quando comparado com outros no mundo, nomeadamente, o norte americano mais musculado e duro, como é possível observar em muitos programas na televisão por cabo. António Leitão é da opinião de que se a pena de prisão tem por objetivo evitar a reincidência, não há estatísticas no mundo que provem que os sistemas mais severos conseguem evitar que o recluso uma vez em liberdade não volte a reincidir.

A crise por si só também não veio na sua opinião aumentar o número de crimes de roubo e com isso a população prisional, embora reconheça que há mais cidadãos nas cadeias, embora não associe à crise. Com 50 anos, natural de Ansião, está ligado ao meio desde 1990. Já foi diretor da cadeia de Vale Judeus, nomeado em 2003, e em 2010 veio para a de Alcoentre, passou antes pelas de Leiria e Caxias. Há 25 anos anos ligado às prisões, refere que o padrão do recluso mudou em alguns casos, mas o ligado ao crime de droga e roubo mantem a sua máxima popularidade, se bem que o crime passional, na sua opinião, tem alcançado nos últimos anos “mais protagonismo”, aliado ao de violência doméstica. “No passado, a opinião publica não censurava, e a evolução da sociedade veio a censurar esse crime. Foi uma conquista civilizacional.”

Sílvia Agostinho
01-06-2015


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Comentários

Excelente artigo. Parabéns!
Mário Baleizão
09/01/2018 18:34

Jornal Valor Local @ 2013


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