Opinião Ana Bernardino: "Recordar Abril não apenas no dia 25, mas todos os dias da nossa vida"
"A barbárie da invasão Russa à Ucrânia tem na sua génese um regime autocrático, construído a partir da destruição dos mais elementares alicerces de uma democracia"
|07 Nov 2022 16:49
A celebração dos 48 de democracia em Portugal é um momento de exaltação dos
valores da liberdade, mas também tem de ser um momento de pedagogia política para que ninguém se esqueça do que milhões de portugueses sofreram em ditadura. Um dia que deve ser celebrado e vivido todos os dias da nossa vida. Como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar…”. Significa isto que não podemos permitir que a verdade seja branqueada pelos inimigos da democracia. Perante o que se está a passar no mundo, temos hoje maior consciência de que a democracia liberal em que a Europa vive não é um regime adquirido. No contexto em que vivemos e perante a narrativa populista dos saudosistas do fascismo em Portugal, temos obrigação cívica de recordar o que foi viver num regime de ditadura. Recordar o que foi viver perto de 50 anos de ditadura sem liberdade. Recordar o que foi viver numa ditadura em que os governantes, os autarcas não eram democraticamente eleitos pelo Povo. Recordar o que foi viver numa ditadura em que o Povo não tinha voz para dizer o que pensava. Uma ditadura em que mais de 25% da nossa população em 1974 era analfabeta. Uma ditadura sem direitos sociais, onde a liberdade associativa não existia, onde, entre muitas outras atrocidades aos direitos humanos, existia polícia política – a PIDE – que castrava a liberdade de expressão e que promovia a tortura e a morte daqueles que pensavam diferente. Uma ditadura, onde as mulheres não tinham o pleno direito para votar. Nos muitos exemplos que aqui poderia partilhar nas mais diversas áreas da vida das pessoas, recordar que foi necessário chegarmos ao 25 de Abril para que a Lei estabelecesse um reconhecimento total da igualdade entre homens e mulheres, nomeadamente, em tudo aquilo que diz respeito aos direitos de participação cívica e política. Enquanto democratas, temos um dever de memória, temos uma acrescida responsabilidade cidadã de explicar às novas gerações, aos mais jovens o que era o nosso país antes do 25 de Abril e as muitas vidas que o fascismo ceifou até se conquistar a liberdade e a democracia. Que tenhamos todos a consciência de que o 25 de Abril não pertence a uma geração nem a um partido político. Que o 25 de Abril é acima de tudo e cada vez mais daqueles que nem sequer o viveram. A frase que ficou na história: “Quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui”. Foram estas as palavras que há 48 anos, pelas 3 e meia da manhã, o jovem Capitão Salgueiro Maia dirigiu aos seus homens da Escola Prática de Cavalaria de Santarém. A minha segunda mensagem pretende enaltecer e reconhecer o papel determinante de todos aqueles que responderam de forma afirmativa ao desafio do “Capitão sem medo”. Salgueiro Maia, com apenas 29 anos, em nome de todos nós, em nome de Portugal e do nosso futuro decidiu, com muitos outros jovens das Forças Armadas, erguer-se e tomar o destino nas suas mãos. A revolução dos Cravos que todos os anos, há 48 anos, assinalamos foi um exemplo de vontade de semear futuro e valores de esperança. A nossa Revolução teve um papel decisivo na história Universal. Contribuiu e influenciou, pelo exemplo, as “transições democráticas” que se lhe seguiram, todas pacíficas, na Grécia, em Espanha e, ao longo dos anos, na América Latina. Nessas mãos, na coragem e na bravura dos muitos que partiram de Santarém, mas também de Tancos, de Santa Margarida, de Estremoz, de Vendas Novas ou de Mafra em direção a Lisboa, não tiveram medo do futuro e fizeram nascer o sonho de um país diferente para todos nós, um futuro melhor para as novas gerações. O sonho de um país livre e democrático. O sonho de um país em que todos os cidadãos tenham o poder do voto secreto, livre e democrático para escolher quem o representa. O sonho de um país igual para homens e mulheres. O sonho de um Portugal mais justo e solidário. O sonho de um país mais desenvolvido e com mais oportunidades para todos. O sonho de um país em que a riqueza fosse melhor repartida. 48 anos depois, temos a consciência que este sonho de abril vive momentos de algum desencanto. As conquistas e os avanços observados nas áreas da educação e da cultura, do serviço nacional de saúde, da proteção social, dos equipamentos e infraestruturas públicos reúnem hoje um amplo consenso político, na comparação com a pesada herança social da ditadura em que vivemos quase 50 anos. Contudo, as persistentes desigualdades sociais, os baixos e desequilibrados níveis salariais e a falta de oportunidades de emprego qualificado para fixar os mais jovens no nosso território, ensombram os sonhos que as portas de Abril abriram. O sonho deu lugar à forte descrença nas instituições políticas que é refletida em valores de abstenção com valores preocupantes. Deu lugar a um afastamento dos cidadãos daquilo que diz respeito a todos. Não podemos ignorar a desconfiança no sistema de Justiça ou o distanciamento crescente dos cidadãos da vida política e da vida partidária. Para nós, para os democratas, é totalmente legitimo criticar muitas das opções que se fizeram ao longo destes 48 anos. E este é um dos valores mais determinantes do nosso regime político: podemos criticar e contestar as opções políticas porque vivemos em liberdade e em democracia. E este ano, primeira vez o número de dias em liberdade ultrapassou o número de dia em que vivemos em ditadura.~Esta data foi assinalada no passado dia 23 de Março, em que registámos 17 500 dias em liberdade, por oposição aos 17 499 dias em ditadura. Todos aqueles que como eu não viveram o 25 de Abril, desconhecem o que é a experiência de viver num regime autoritário. Desconhecem o que é viver num regime autoritário mas testemunham diariamente, desde o dia 24 de Fevereiro, o que é ter um regime autoritário e autocrático às portas da União Europeia. A terceira e última mensagem é que a democracia não é um regime adquirido. A barbárie da invasão Russa à Ucrânia tem na sua génese um regime autocrático, construído a partir da destruição dos mais elementares alicerces de uma democracia. Reforço: A democracia não é um regime adquirido. A democracia liberal em que a maioria dos países da União Europeia vive e que dá como garantida é uma realidade construída apenas no século passado. A somar a estas circunstâncias históricas temos assistido nos últimos anos ao surgimento de líderes políticos antidemocráticos que estão a combater os princípios constitucionais em que assentam as democracias liberais ocidentais. Insisto: A democracia não é um regime adquirido e está a ser ameaçada. Marie Le Pen em França, Viktor Orbán na Hungria, Kaczynski na Polónia ou Salvini em Itália defendem hoje princípios completamente opostos às Convenções Internacionais sobre os direitos da humanidade, nomeadamente ao nível dos direitos das minorias que são discriminadas por razões de orientação sexual, religiosas ou de território de origem. A título de exemplo, muitas das posições da extrema direita em Portugal, colidem com o principio constitucional vertido no Artigo 13.º da nossa constituição, que descreve o “Principio da Igualdade”, e enuncia que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Até nos Estados Unidos, a grande casa da democracia há 233 anos, um presidente, Donald Trump, tentou invalidar os últimos resultados eleitorais para se perpetuar no poder. A democracia não é mesmo um regime adquirido. O contexto geopolítico que vivemos, marcado pelas consequências económico-sociais decorrente da pandemia, o Brexit, os avanços da extrema direita, a crise energética e humanitária da invasão Russa à Ucrânia, determinam, hoje, ameaças sérias às democracias liberais ocidentais e ao ambiente de Paz em que vivemos no seio da EU desde a II Grande Guerra Mundial. Temos de encontrar na Revolução dos Cravos a energia e o alento para estarmos à altura do presente que vivemos. O presente exige de todos nós a mesma coragem para defender a democracia e a liberdade com que temos construído um país e uma Europa livre e democrática. Por isso, defender a democracia, hoje, é aprofundar a cultura de diálogo social para se estabelecerem compromissos que melhorem a vida das pessoas, em oposição ao populismo fácil que tem catapultado as ideologias da extrema direita, que vivem do ódio, da crispação e da divisão social. Defender a democracia, hoje, é reforçar o investimento na escola, na cultura, na cidadania democrática e melhorar os mecanismos de eleição e de fiscalização dos eleitos políticos. Defender a democracia, hoje, é envolver mais os jovens na vida da nossa comunidade, é dar-lhes mais responsabilidades para que se sintam, de pleno direito, mas também de pleno dever, parceiros mais intervenientes na definição do nosso futuro coletivo em áreas tão importantes como a sustentabilidade ambiental ou a transição digital. Defender a democracia, hoje, é estarmos à altura de todos aqueles que há 48 anos acreditaram nos valores da liberdade, não tiveram medo do futuro e foram em busca de um país novo e democrático. Viva a Liberdade e Viva a Democracia. |
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