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Opinião: As inundações de 25 de Novembro de 1967

Mas quando saímos, a Fontes Pereira de Melo era um rio. Metemo-nos no carro do meu pai já com água pelo tornozelo, descemos ao Marquês e subimos à Estrela, mas em Alcântara a água começou a ameaçar invadir o carro
Joaquim Ramos
11-12-2017 às 12:24
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Lembro-me bem das inundações de 25 de Novembro de 1967, faz agora cinquenta anos – como a tempo passa! Dois anos antes os meus pais deixaram Azambuja e foram viver para os arrabaldes de Paço de Arcos, que ficava mais à mão dos empregos.

Essa foi para a minha família uma noite de festa. O meu pai fizera anos dois dias antes e, nesse Sábado, a família toda foi convidada para ir ao Villaret ver a peça “António Marinheiro, Édipo de Alfama”, de Bernardo Santareno. Com a Eunice Muñoz a fazer de Amália, a mãe/esposa, e um esplendoroso João Perry com vinte e poucos anos, hoje avô nas telenovelas, na pele do jovem António Marinheiro.

Não nos passou pela cabeça o que acontecia por essa Lisboa e arredores enquanto na sala se desenrolava o drama do jovem, abandonado em bébé, que volta a Alfama e se apaixona e casa com aquela que, mais tarde, descobre ser a sua mãe. Dentro do Villaret não chovia e na Alfama do palco o tempo era de securas.
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Mas quando saímos, a Fontes Pereira de Melo era um rio. Metemo-nos no carro do meu pai já com água pelo tornozelo, descemos ao Marquês e subimos à Estrela, mas em Alcântara a água começou a ameaçar invadir o carro. Toda a marginal, do Cais do Sodré a Algés, era uma mar de água e lama e coisas a boiar. O meu pai conseguiu, no entanto, enfiar por Monsanto e chegámos secos a Porto Salvo (nem a propósito, era onde eles viviam…).

Morreram afogadas mais de setecentas pessoas, famílias inteiras foram arrastadas pelas lamas, engolidas pelas ribeiras, soterradas em escombros. Nalgumas localidades, como em Quintas e Cadafais, por trás de Vila Franca, morreu a população quase toda em escorregamentos de terras e avalanches de entulhos. Passados dois dias apareceu no Esteiro de Azambuja um colchão a boiar com um homem morto em cima.

Soubemos da dimensão da tragédia porque alguns jornais estrangeiros entraram clandestinamente em Portugal e alguns diário particularmente visados pelo lápis azul – como o Diário de Lisboa – aproveitaram a distração e o desnorte da Censura para dar a notícia em sítios inesperados, como a Necrologia ou as páginas de anúncios.

Choveu muito, durante três ou quatro horas o equivalente a um quarto da pluviosidade média anual. Mas nos países civilizados pode chover muito que não morrem, naquelas condições, mais de setecentas pessoas. Não foi apenas a chuva a responsável. Foram-no também a miséria e o desordenamento do território, em que sempre fomos pioneiros. A miséria, porque quem morreu foi arrastado de barracas de madeira e chapa onde se alojaram os que nos anos cinquenta e sessenta foram obrigados a deixar as suas terras e vir alimentar a massa proletária (não, não sou marxista…) que veio servir a cintura industrial de Lisboa a troco de salários miseráveis e incertos. E é muito mais fácil construir uma barraca numa zona plana, num baixio, que a meia encosta ou no alto dos montes. O desordenamento que ainda hoje grassa na área metropolitana de Lisboa, ainda que já sem barracas, vem desse fenómeno de êxodo para a cidade.

Cinquenta anos mais tarde. Não chove há meses e Outubro dá-se ares de Agosto. Ano de 2017 da Graça de Deus. Mais de cem pessoas morrem em incêndios florestais, centenas da casas e empresas são destruídas, milhares vêm arder em horas o que levou uma vida a construir. O centro do país parece um forno em fim de braseiro, cinzento e nu…

Mas agora os vários canais de televisão dão a morte quase em direto, os jornais e revistas dedicam edições especiais à tragédia, entrevistam-se vítimas e bombeiros, inventam-se coisas, omitem-se outras, exige-se a demissão de ministros e cadeias de comando. Entram-nos pela casa dentro os carros calcinados de Pedrógão, as casas ardidas de Arganil, as empresas destruídas de Tondela, os pinhais incandescentes de Leiria.

Não arderam barracas porque, à custa de muito esforço individual e coletivo, não há famílias a viver no mesmo tipo de barracas que foram arrastadas pelas águas em 1967.

Parece que as tragédias foram radicalmente diferentes, nesse ano já longínquo e agora. Há cinquenta anos, foi a água que matou. Agora, foi a sua escassez e o fogo que o fizeram. Em 1967 o terror abateu-se nos subúrbios metropolitanos de Lisboa. Em 2017, nas ruralidades florestais do interior do país.

Nesse tempo, a Censura e o Governo de então abafaram a verdade. Agora, tudo quanto é órgão de soberania veste colete antifogo e protege a cabeça e passa dias nos locais atingidos. A comunicação social relata, investiga, gesticula na TV com pinheiros a ardes como cenário.

Uma coisa, no entanto, não mudou: a nossa incapacidade para ordenar o território e fixar populações no interior. Enquanto se foi pondo alguma ordem nas cidades e arredores, as zonas florestais e rurais do interior foram abandonadas à voracidade de madeireiros e celuloses ou à invasão de espécies estranhas e arbustos rasteiros e combustíveis.

Que ninguém duvide: os mortos dos fogos de 2017 foram vítimas, antes de tudo, do desordenamento florestal em que o país mergulhou durante anos e no reiterado abandono a que o “campo” foi condenado.

Será esta uma fatalidade que acompanha e acompanhará a nossa vida enquanto povo? Creio que não. E parece-me vislumbrar, de há uns – poucos …- anos para cá, que esta tendência secular de desordenamento e fuga do interior começa a apresentar indícios de reversão. Parece-me ver despontar uma nova geração, mais instruída e preparada, que não renega as suas raízes, finca os pés e as mãos à terra, luta por desenvolver as potencialidades que as Beiras, Trás-os-Montes, os Alentejos e Ribatejos têm em diversos campos. E algumas com histórias já de sucesso no turismo e no efeito estimulador que o turismo tem sobre a economia local, na agricultura, no valor acrescentado das suas tecnologias inovadoras, na exigência social que comanda as suas iniciativas. Será esse o caminho, lento mas inevitável. Só assim deixaremos de ter enxurradas e fogos que assassinam em massa.
Mas isso será, certamente, assunto para outras crónicas e discussões.


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