|
Todos nós temos Amália na voz. O tanas, desculpem-me o calão. Não há, entre os dez milhões de portugueses espalhados neste cantinho mais os outros milhões que moirejam por terras estranhas, quem tenha aquela capacidade de cantar fados, malhões, samba, flamenco, cancões italianas de Nápoles, coisas francesas do Aznavour, que Amália tinha. Foi seguramente uma das dez grandes cantoras do século 20, a par da Callas, da Piaf ou da Ella Fitzgerald.
Houve um tempo em que me considerava um bicho esquisito. Enquanto os meus amigos e colegas de liceu se desengonçavam ao som das “bandas” que nasciam aqui e ali depois de aparecerem os Beatles, eu queria era ouvir na Rádio ou nos gira-discos de café onde se punha uma moeda e o mecanismo ia buscar o 4 G, o Barco Negro ou o Povo que Lavas no Rio. Vi Amália ao vivo quatro vezes na vida, e cada uma delas tem a sua história. E foi um deslumbramento, também. Vi-a uma primeira vez no Casino Estoril. Não que eu fosse um frequentador habitual, mas acontece que o meu pai era amigo dum senhor que tinha mesa própria no Casino e que, nessa noite que a Amália lá cantou, convidou-nos para ir com ele.. Ao intervalo, ela dava autógrafos no Lobby e eu, com o meu caderninho de autógrafos, a tentar perfurar a multidão até chegar a ela. Quando finalmente consegui entregar o livrinho, estava tão enlevado frente ao meu ídolo, que lhe disse chamar-me Zé…onde é que parará esse caderno, que tem numa página, numa letra redonda” Para o Zé, com a amizade da Amália”? Voltei a vê-la, muitos anos mais tarde, quando a Câmara de Lisboa, com o Eng. Abecasis, resolveu fazer-lhe uma homenagem no S.Luis. Fiz parte da Comissão organizadora. A primeira parte foi um desfile de vedetas, nacionais e internacionais que vieram homenageá-la, enquanto ela assistiu num camarote. Sozinha, mandou a representante dela que tratava connosco. E com uma garrafa de Whisky, um balde de gelo e um copo, ordenou a criatura. A segunda parte foi Amália, e não cambaleava. Vi-a na Praça de Toiros da Nazaré. Cantava em qualquer sítio e com a mesma voz e entrega, quer fosse no Olympia quer na Praça da Nazaré. A ultima vez que a vi foi no seu primeiro espectáculo no Coliseu de Lisboa. Já era uma Diva a nível internacional. A voz tornara-se-lhe mais profundo e acho que, com a idade, foi ganhando alma fadista. Mas a verdade é que a voz já não era o que fora, e tinha que usar alguns truques para O Povo que Lavas no Rio ou para o Fado Malhoa. Creio que foi quando foi condecorada pelo Presidente da República, Mário Soares. Mas não vos faz “ espécie”, caros leitores, que Amália Rodrigues, que actuou nas principais salas de espectáculo do Mundo, só na fase descendente da sua carreira se tenha estreado no Coliseu, já na década de oitenta? A mim não faz. É política. É que, como em quase tudo, a forma como o Poder em Portugal lidou com Amália mudou muito ao longo dos tempos e aos sabores das circunstâncias e interesses políticos. Eu fico parvo quando ouço propalar que Amália deu dinheiro aos comunistas, subsidiou “subversão”, só falta dizer que cantou na Festa do Avante. Fico parvo com uma das manas Mortágua a dizer que é um símbolo nacional e mais não sei quê. Vamos ver as coisas com coerência : não acredito que Amália fosse da Pide nem da União Nacional nem defensora do Estado Novo. Mas a verdade é que o Estado Novo se apropriou da sua imagem, quando se apercebeu que ela era das poucas coisas que referenciava Portugal no Mundo. E ela deixou. Assim como se calhar deu dinheiro a comunistas e recebia gente do reviralho na sua Casa da Rua de S.Bento. Simplesmente porque se estava nas tintas. Queria ela era lá bem saber do Estado Novo ou se eram comunistas ou fascistas. Ela queria era cantar e ser uma vedeta internacional imune às questões políticas. Amália chegou ao vinte e cinco de Abril com a imagem do Estado Novo colada, e a esquerda radical (e a moderada também…) que hoje a bajula e só faltou convidá-la para o Comité Central do PCP, fez-lhe a vida negra. Ostracizou-a, quem gostava da Amália era fascista, boicotava-a de toda a forma e feitio. Lembro-me daquele primeiro espectáculo no Estoril, em que os trabalhadores do Casino lhe boicotaram o som várias vezes, fazendo com que os instrumentos se sobrepusessem à sua voz. O longo período de reabilitação de Amália, não junto dos portugueses, que sempre estiveram com ela, mas dos representantes do poder instituído, culminou nesse concerto do Coliseu a que assisti (já no fim da carreira de Amália), com honras de Presidente da República e tudo. Mesmo assim, estou cá desconfiado que o Poder a endeusou porque percebeu que não tinha alternativa. O seu prestígio internacional e o consenso que despertava como símbolo de Portugal já eram de tal forma poderosos que o Estado não podia fingir que não a via. E a esquerda radical, que disse de Amália, nos idos de setenta e oitenta, o que Maomé não disse do toucinho, tratou de arranjar umas ajudas a comunistas e umas afrontas ao Estado Novo para se poder, também, apropriar da sua imagem. É sempre assim. Quando se está perante um símbolo nacional, há que desfrutar da sua sombra. Ser admirador de Amália ainda dá votos…Não importa o regime, Ditadura ou Democracia, não interessam as ideologias da extrema esquerda à extrema direita : o que interessa é a mais valia em termos políticos que esse símbolo nacional representa. Eu acho que na sua modesta cova de Santa Comba Dão, se ouvir agora os Partidos de Esquerda a bajular Amália, Salazar deve estar a rir-se. |
|
|
|
|
|
Deixe a sua opinião sobre este artigo!
Seja o primeiro a comentar...
Nota: O Valor Local não guarda nem cede a terceiros os dados constantes no formulário. Os mesmos são exibidos na respetiva página. Caso não aceite esta premissa contacte-nos para redacao@valorlocal.pt