Património da Humanidade
Por Joaquim Ramos
04-10-2016 às 15:34
Há coisas importantes que perdem a sua importância quando se começam a banalizar. Eu não quero com isto dizer que as coisas banais – no sentido da sua vulgaridade – não sejam importantes. Não, a generalidade dos sentimentos que compartilhamos enquanto Humanidade – a amizade, o amor, a ética, o respeito pela Natureza, a Fé ou a falta dela - são sentimentos que são comuns à generalidade das pessoas e não são de forma nenhuma banais. Antes pelo contrário, são o cimento que nos une e distingue enquanto homens e mulheres.
Banais não são as coisas inerentes à condição humana . Perdem a sua importância e objectivos as coisas que foram criadas por vontade dum homem ou duma instituição e que caiem na vulgaridade.
Penso que o assunto escolhido para tema central do ValorLocal para esta edição, e que tem a ver com uma figura de estilo chamada Património da Humanidade – sim corre seriamente o risco de se tornar numa figura de estilo- está em perigo de banalização.
Portugal entrou neste mundo dos sítios Patrimónios da Humanidade quando a classificação apenas se referia a coisas físicas : cidades, centros históricos, monumentos construidos ou naturais.
Foi em 1983, na reunião da Unesco em Florença – ela própria Património Mundial – que, pela primeira vez e com critérios objectivos, vimos quatro candidaturas nossas serem aprovadas. Passaram a ser Património da Humanidade o centro histórico da cidade de Angra do Heroísmo, nos Açores, o Mosteiro da Batalha, o Convento de Cristo de Tomar e o conjunto monumental Jerónimos-Torre de Belém. Foi um enorme orgulho para quem está atento a estas coisas, as televisões não se calaram durante dias, fizeram-se festejos e reivindicaram-se autorias e protagonismos no processo, foram afectados fundos internacionais para a sua preservação e valorização – o objectivo ultimo da criação dessa figura.
Mas depois fomos atacados, bem como os restantes países, por aquele tique que costuma ser apontado como património de Autarcas : se o vizinho tem, eu também quero ter. Se Angra do Heroísmo é Património da Humanidade, porque hão-de Sintra, Guimarães,Évora, o Porto e por aí fora ficarem arredadas desse título quase nobiliário de Centro Histórico Mundial? Porque raio é que o Mosteiro de Alcobaça, a Torre dos Clérigos, o Palácio da Ajuda, os gatafunhos de Foz Côa não têm, aos olhos da Unesco, a mesma reputação universal do Mosteiro da Batalha?
Pergunto quem sabe hoje quantos Patrimónios da Humanidade temos em Portugal. Eu já lhes perdi a conta.
Não subvalorizo a valia artística, histórica e arquitectónica de cada um deles. O que receio é que qualquer dia apareça qualquer grupo a reivindicar o estatuto de Património da Humanidade para o Mosteiro das Virtudes ou para a Patriarcal de Vila Franca !
É que essa banalização subverte completamente o objectivo que presidiu à criação deste estatuto – a sua preservação e divulgação. Porque, com recursos que são limitados, as verbas destinadas a cada um deles vão diminuindo tal qual como uma fracção : quando o numerador é constante e o denominador vai aumentando sem controlo, o seu valor tende para zero! É da matemática. E pronto, lá ficam os Patrimónios Mundiais, glória e orgulho de tantos cidadãos, a esperar melhores dias.
No entanto, deve reconhecer-se, apesar desta generosidade democrática e universal da Unesco – que, como organização da ONU, tem que agradar a todos os Continentes e Países integrantes e desatou a classificar cidades e monumentos em tudo o que é País...- que existem critérios objectivos de classificação que são facilmente identificáveis.
Mas como se não bastasse esta vulgarização dum estatuto que deveria ser restringido a Patrimónios, construidos ou naturais, que são, de facto um marco na histórias da Humanidade, alguém se lembrou – e bem - que não são só as coisas materiais que devem ser preservadas. Nasceu então o conceito de Património Imaterial da Humanidade, cujo nome indicia a sua própria subjectividade e dá forma às mais disparatadas confabulações sobre usos e costumes.
O Património Imaterial abrange os saberes,os modos de fazer, as formas de expressão, as celebrações, as festas e danças populares, as lendas, as músicas, os costumes...já imaginaram, se o crivo da selecção não é rigoroso com a fundamentação das propostas, o que para aí é e vai ser de Patrimónios Imateriais da Humanidade?
Tomemos como o exemplo a música. É claro que eu acho que a ópera, o jazz, o rock, o gospel, o próprio fado ( nosso) e o flamenco ( de nuestros hermanos) são formas de expressão artística que, pela importância que tiveram e têm nas Comunidades de origem e FORA DELAS, devem ser preservados e valorizados. Se o conceito de Património Imaterial contribuir para isso, nada contra e tudo a favor.
São formas musicais que saltaram fronteiras e são conhecidos ( quase todas elas) no Mundo inteiro.
Mas o cante alentejano, só para dar um exemplo...que me perdoem os meus amigos alentejanos ! Quem sabe o que é fora de Portugal ? E o toque dos chocalhos não sei donde ? Será legítimo comparar o som da garganta de Amália Rodrigues ou de Maria Callas ao som duma ovelha a abanar a cabeça? Penso que não. É a isso que eu chamo banalizar um estatuto que podia ser importante do ponto de vista da Cultura.
Há para aí agora umas ideias de propôr à Unesco a classificação de certas formas de vida muito restritas do ponto de vista geográfico e das quais, nalguns casos, apenas restam vestígios – na maioria, até, desvirtuados – como Património Imaterial da Humanidade. Cuidado. Podemos estar a pôr em causa outras coisas que são de facto importantes à escala mundial.
Por isso eu acho que deveria investir-se numa hierarquia do conceito de Património Material ou Imaterial. Deveria haver uma tabela de Património Nacional – com regras bem definidas, e não à deriva dos Governos como actualmente – e de Património Municipal. E aí já a Igreja do Convento das Virtudes teria o seu lugar. Mas há que ter, acima de tudo, o sentido das proporções e não meter tudo no mesmo saco.
Por Joaquim Ramos
04-10-2016 às 15:34
Há coisas importantes que perdem a sua importância quando se começam a banalizar. Eu não quero com isto dizer que as coisas banais – no sentido da sua vulgaridade – não sejam importantes. Não, a generalidade dos sentimentos que compartilhamos enquanto Humanidade – a amizade, o amor, a ética, o respeito pela Natureza, a Fé ou a falta dela - são sentimentos que são comuns à generalidade das pessoas e não são de forma nenhuma banais. Antes pelo contrário, são o cimento que nos une e distingue enquanto homens e mulheres.
Banais não são as coisas inerentes à condição humana . Perdem a sua importância e objectivos as coisas que foram criadas por vontade dum homem ou duma instituição e que caiem na vulgaridade.
Penso que o assunto escolhido para tema central do ValorLocal para esta edição, e que tem a ver com uma figura de estilo chamada Património da Humanidade – sim corre seriamente o risco de se tornar numa figura de estilo- está em perigo de banalização.
Portugal entrou neste mundo dos sítios Patrimónios da Humanidade quando a classificação apenas se referia a coisas físicas : cidades, centros históricos, monumentos construidos ou naturais.
Foi em 1983, na reunião da Unesco em Florença – ela própria Património Mundial – que, pela primeira vez e com critérios objectivos, vimos quatro candidaturas nossas serem aprovadas. Passaram a ser Património da Humanidade o centro histórico da cidade de Angra do Heroísmo, nos Açores, o Mosteiro da Batalha, o Convento de Cristo de Tomar e o conjunto monumental Jerónimos-Torre de Belém. Foi um enorme orgulho para quem está atento a estas coisas, as televisões não se calaram durante dias, fizeram-se festejos e reivindicaram-se autorias e protagonismos no processo, foram afectados fundos internacionais para a sua preservação e valorização – o objectivo ultimo da criação dessa figura.
Mas depois fomos atacados, bem como os restantes países, por aquele tique que costuma ser apontado como património de Autarcas : se o vizinho tem, eu também quero ter. Se Angra do Heroísmo é Património da Humanidade, porque hão-de Sintra, Guimarães,Évora, o Porto e por aí fora ficarem arredadas desse título quase nobiliário de Centro Histórico Mundial? Porque raio é que o Mosteiro de Alcobaça, a Torre dos Clérigos, o Palácio da Ajuda, os gatafunhos de Foz Côa não têm, aos olhos da Unesco, a mesma reputação universal do Mosteiro da Batalha?
Pergunto quem sabe hoje quantos Patrimónios da Humanidade temos em Portugal. Eu já lhes perdi a conta.
Não subvalorizo a valia artística, histórica e arquitectónica de cada um deles. O que receio é que qualquer dia apareça qualquer grupo a reivindicar o estatuto de Património da Humanidade para o Mosteiro das Virtudes ou para a Patriarcal de Vila Franca !
É que essa banalização subverte completamente o objectivo que presidiu à criação deste estatuto – a sua preservação e divulgação. Porque, com recursos que são limitados, as verbas destinadas a cada um deles vão diminuindo tal qual como uma fracção : quando o numerador é constante e o denominador vai aumentando sem controlo, o seu valor tende para zero! É da matemática. E pronto, lá ficam os Patrimónios Mundiais, glória e orgulho de tantos cidadãos, a esperar melhores dias.
No entanto, deve reconhecer-se, apesar desta generosidade democrática e universal da Unesco – que, como organização da ONU, tem que agradar a todos os Continentes e Países integrantes e desatou a classificar cidades e monumentos em tudo o que é País...- que existem critérios objectivos de classificação que são facilmente identificáveis.
Mas como se não bastasse esta vulgarização dum estatuto que deveria ser restringido a Patrimónios, construidos ou naturais, que são, de facto um marco na histórias da Humanidade, alguém se lembrou – e bem - que não são só as coisas materiais que devem ser preservadas. Nasceu então o conceito de Património Imaterial da Humanidade, cujo nome indicia a sua própria subjectividade e dá forma às mais disparatadas confabulações sobre usos e costumes.
O Património Imaterial abrange os saberes,os modos de fazer, as formas de expressão, as celebrações, as festas e danças populares, as lendas, as músicas, os costumes...já imaginaram, se o crivo da selecção não é rigoroso com a fundamentação das propostas, o que para aí é e vai ser de Patrimónios Imateriais da Humanidade?
Tomemos como o exemplo a música. É claro que eu acho que a ópera, o jazz, o rock, o gospel, o próprio fado ( nosso) e o flamenco ( de nuestros hermanos) são formas de expressão artística que, pela importância que tiveram e têm nas Comunidades de origem e FORA DELAS, devem ser preservados e valorizados. Se o conceito de Património Imaterial contribuir para isso, nada contra e tudo a favor.
São formas musicais que saltaram fronteiras e são conhecidos ( quase todas elas) no Mundo inteiro.
Mas o cante alentejano, só para dar um exemplo...que me perdoem os meus amigos alentejanos ! Quem sabe o que é fora de Portugal ? E o toque dos chocalhos não sei donde ? Será legítimo comparar o som da garganta de Amália Rodrigues ou de Maria Callas ao som duma ovelha a abanar a cabeça? Penso que não. É a isso que eu chamo banalizar um estatuto que podia ser importante do ponto de vista da Cultura.
Há para aí agora umas ideias de propôr à Unesco a classificação de certas formas de vida muito restritas do ponto de vista geográfico e das quais, nalguns casos, apenas restam vestígios – na maioria, até, desvirtuados – como Património Imaterial da Humanidade. Cuidado. Podemos estar a pôr em causa outras coisas que são de facto importantes à escala mundial.
Por isso eu acho que deveria investir-se numa hierarquia do conceito de Património Material ou Imaterial. Deveria haver uma tabela de Património Nacional – com regras bem definidas, e não à deriva dos Governos como actualmente – e de Património Municipal. E aí já a Igreja do Convento das Virtudes teria o seu lugar. Mas há que ter, acima de tudo, o sentido das proporções e não meter tudo no mesmo saco.
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