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Opinião Joaquim Ramos: "Tauromaquia""Eu confesso que, analisando argumentos, acho os dos defensores da abolição mais bacocos e artificiais. Considero que as razões dos defensores da festa brava são mais consistentes, historicamente fundamentadas"
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É-me particularmente difícil escrever sobre Tauromaquia. Mas como é o tema desta edição do Valor Local, será ela o tema da minha crónica. Sei que vou meter-me em terrenos curtos. Em assuntos sérios, porque controversos e a despertarem paixões por parte de aficionados e detratores. Refiro-me à tauromaquia em sentido restrito, isto é, às corridas de toiros. Nada de toiros na lezíria agora, brincadeiras com toiros, esperas e largadas. É verdade que o toiro é a nossa fera nacional, a única que resta depois de termos chacinado há dois séculos o ultimo urso lusitano, no Gerês. É natural que seja o toiro a materializar a nossa ideia de perigo, de vida em risco. Ninguém se lembra, quando se passeia pela Lezíria à borda do Tejo ou dorme a sesta na charneca, à sombra dum sobreiro, que lhe vai saltar em cima um leopardo ou é trucidado por um rinoceronte! Não são esses animais a nossa mitologia de perigo, é o toiro.
Por isso mesmo, nos nossos rituais de desafiar o perigo – rituais que todas as comunidades, em qualquer época e lugar, tiveram – o toiro está sempre presente. Nas esperas, nas largadas, nas vacadas que se organizam por esse país fora e nas corridas de toiros, a matriz é sempre a mesma: aquela natural tendência do homem para desafiar o perigo apenas para ver até onde é capaz de ir. É também uma característica exclusiva da espécie humana: não conheço outra que não se exponha apenas para satisfazer os seus instintos básicos. Desde pequeno que vou a corridas de toiros. Lembro-me vagamente de, ainda de calções, ir a corridas de toiros com os meus pais, a Santarém, na Nazaré e por ultimo no Cartaxo, para fim de “saison”, no dia de Todos os Santos. Mas do que me lembro mesmo bem é das corridas a que assisti quando estive no Açores, ainda na velhinha praça de Angra, cuja característica mais notória era não ter teia: a arena confinava diretamente com o murete que a separava dos espectadores. Eu era um interesseiro! Tinha-me travado de amizades juvenis com um neto do João dos Ovos, o que me garantia acesso gratuito a todas as corridas. O João dos Ovos era uma figura incontornável da tauromaquia açoriana. Durante décadas foi ele, só ele, que abriu a porta dos curros de qualquer corrida terceirense. Fazia continência ao cornetim e, quando o toiro aparecia à saída do túnel cujo ferrolho ele correra, dava-lhe um simulacro de capotazzo com a mão livre, estilo Monolette. Eu acho que se tirassem o João dos Ovos da porta dos sustos, ele morria nos dias seguintes. Nesse tempo, estava no auge a rivalidade Manuel dos Santos/Diamantino Viseu. Havia na Terceira, e creio que no Continente também, uma espécie de clube de fans dum e doutro – alguns seguiam-nos por todo o lado, tal como Hemingway com o António Ordoñez. Para desespero da minha mãe, eu era do clube Diamantino Viseu. Na corrida anual que eles faziam na Terceira, Angra, os angrenses engalanavam-se como Sevilha em tarde de Don Curro Romero. Constato que foi nessa confinamento insular que a afición esteve mais à flor da minha pele. Não só pelos extremismos da pré-adolescência – idade em que se ama ou odeia tudo, sem meio termo- mas também porque era na Terceira que os espetáculos com toiros estavam mais presentes na quotidiano, mais do que em qualquer local onde tenha vivido. Com o meu regresso ao Continente esmoreceu essa minha atracção por corridas de toiros – e foi esfriando à medida que avançava na idade e que a “fiesta” em Portugal se degradava de ano para ano. Nesse período, limitei-me a duas ou três corridas em Espanha (vi Don Curro em Sevilha). Concorde-se ou não com corridas de toiros, a “fiesta” em Espanha é outra loiça : tem arte, tem regras, tem público que sabe o que está a ver. Arredado de lides me mantive até ao momento em que, por razões institucionais, mergulhei novamente nesse mundo durante doze anos da minha vida – às vezes pessoalmente constrangido, devo confessar. Mas sempre tendo presente que, sendo eu presidente da câmara duma terra de aficionados, o que deveria nortear as minhas decisões eram as tradições culturais do povo que eu representava e não os meus gostos pessoais. Foi por isso que me responsabilizei pela construção duma nova praça de toiros, divulguei e promovi a Feira de Maio e levámos à classificação da Tauromaquia como património imaterial do Concelho. O que está na ordem do dia na Tauromaquia é a Tauromaquia em si, ela própria. Digladiam-se utilizando meios de comunicação social, manifestações e contra-manifestações, opiniões de especialistas em bem-estar animal e até confrontos físicos, não só em Portugal como em outros países em que é prática, dois grupos com objectivos contrários : um quer promover as touradas; outro quer acabar com elas. Uns estão do lado da arte e da tradição, outros arremessam-lhes os direitos dos animais e esgrimem que também a escravatura era uma tradição. |
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Uns argumentam com a felicidade do toiro bravo e os cuidados de que é alvo durante a vida, em comparação com os exércitos de animais que vivem encaixotados até ao abate. Ripostam os outros com o martírio a que um toiro é sujeito durante a lide; no caso português até depois dela. É matéria tão de quente que a própria política se meteu nela: os defensores são conotados com a Direita, os detratores com a esquerda.
Eu confesso que, analisando argumentos, acho os dos defensores da abolição mais bacocos e artificiais. Considero que as razões dos defensores da festa brava são mais consistentes, historicamente fundamentadas e acho, sinceramente, que uma faena a pé de Castella ou Manzanares ou outro com o mesmo estatuto, é um momento de arte, um ballet entre homem e toiro. Mas também acho que a história é inexorável. Cada vez mais se espalha, particularmente entre os jovens, aquela filosofia de vanguarda de que somos todos, homens, animais e vegetais e até pedras e elementos químicos em diversas proporções, um todo que integra o Universo a ser preservado e respeitado. Cada vez mais vão generalizar-se leis que preservem o bem-estar animal e que lhes confiram direitos. E isso levará a que, inevitavelmente, primeiro nas zonas de vanguarda social, depois generalizadamente ( lembram-se da Catalunha?), a que, a médio/longo prazo, as corridas de toiros, tal como as vemos agora, estejam condenadas. |
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