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Opinião Joaquim Ramos: "Uma sugestão de Natal""E onde dantes era um pequeno brinquedo ou uma peça de roupa que eram uma bênção natalícia e tinha o deslumbramento duma coisa rara, porque única, hoje são muralhas de pacotes e embrulhos que se desfazem à noite"
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Recordo, sem nostalgia, os Natais da minha infância e juventude. Começavam cedo, os Natais da minha infância. O primeiro cheirinho que me chegava às narinas, anunciando que o Natal vinha aí, era o aroma a canela e aguardente da minha mãe a amassar broas na cozinha. Depois, dava-se a primeira grande reunião natalícia da família : íamos todos, comandados por ela e mais duas ou tês primas ou amigas, moldar as broas e assá-las no forno do Ti Horácio, no Rossio, sob o olhar atento do Estaco, que ia mantendo o forno à temperatura ideal para que aquelas bolinhas redondas de massa inchassem, crescessem, fossem cozendo por dentro e crestando por fora, até se transformarem nas broas que se guardavam em caixas de metal e duravam enquanto durassem as Festas: no dia de Reis, estavam tão fofas e apetitosas como nos meados de Dezembro em que saíram do forno.
Hoje compramos as broas, as azevias, os coscorões e o bolo rei nas pastelarias, mas o espírito de melhorar a ração com esse tipo de iguarias mantém-se igual ao espírito do “feito em casa” de antigamente. Povoam a nossa casa e as nossas mesas, os mesmos aromas e sabores que há gerações são típicos do Natal. É por isso que, em termos gastronómicos, eu não sou nostálgico dos Natais de antigamente. Depois, na noite de Natal, a família do lado da minha mãe juntava-se toda e comíamos bacalhau cozido com batatas e couves, mais uns fritos de velhozes e coscorões e íamos até à Missa do Galo. Íamos cedo, muito antes da meia-noite, para nos juntarmos aos amigos à roda do tronco que ardia no Largo da Igreja, desejar Boas-Festas e cavaquear as novidades da terra. Os mais pequenos bichanavam aos ouvidos uns dos outros os anseios que esperavam do Pai Natal, os mais velhos confessavam o que iriam dar uns aos outros. Isto porque, nesses tempos, o Pai Natal descia mesmo pela chaminé e a gente só via o que ele tinha deixado no outro dia de manhã. Naturalmente que muitos apenas podiam, nessa noite que se queria de abundâncias, melhorar um pouco a escassa ceia dos filhos e, quando muito, comprar um par de peúgas ou umas cuecas para lhes oferecer. O almoço do Natal era em casa do Avô Ramos. Era o Natal da minha família paterna. Comíamos por tradição pato assado no forno e depois o Avô Ramos fazia um discurso. Sempre igual. Como era o ultimo Natal que, segundo ele, viveria, rapava de cinco notas de conto e dava uma a cada um dos cinco filhos. Durante anos o meu pai e os meus tios lucravam mil escudos com aquela crença do Avô Ramos de que morreria antes do próximo Natal. O que é certo é que os anos foram passando e a tradição foi-se tornando demasiado dispendiosa para o Avô Ramos. Até que um Natal decidiu que afinal talvez ainda visse mais Natais e, para desespero dos filhos, reduziu substancialmente o presente natalício. Tendo por base um acontecimento da mitologia cristã, o Natal era – e é – acima de tudo um tempo de reunião de família. Num tempo em que a família tradicional, uma só, era estável e permanente e em que as distâncias eram fáceis de vencer, porque umas família tinha, normalmente, um raio de dispersão pequeno e era fácil juntar-se. Depois vieram os tempos das novas formas de família, com as separações e divórcios, os meio-irmãos de várias mães ou vários pais, a impossibilidade de, ao contrário do que acontecia até aí, as famílias se reunirem num só bloco. O Natal passou a ser uma correria, os filhos a passar a noite com a mãe e o dia com o pai, os pais a transportá-los dum lado para o outro, entrega uns aqui para anoite, outros ali para o almoço de vinte e cinco, outros ainda acolá para o jantar do mesmo dia. Mudou a forma de viver, a organização social, as formas de comunicação, mas o espírito do Natal manteve-se inalterado: a reunião da família. Por isso é que, em termos familiares, eu não tenho a nostalgia dos Natais da minha juventude, porque temos que perceber a essência por trás da forma. Recordo o envio dos cartões de Boas Festas pelo Correio. Fazia-se uma lista dos amigos e familiares a quem queríamos desejar as Boas Festas, apontava-se a morada e compravam-se uns cartõezinhos com Pais Natal que se assinavam e despachavam via CTT. Reparo agora que há anos que não recebo nem envio um cartão de Boas Festas. O Natal acompanhou a evolução da tecnologia e hoje temos telemóveis e mails e Facebook para desejarmos um Bom Natal aos que povoam os nossos afetos. Mudou a forma, mas não mudou a essência dessa outra componente do espírito do Natal, que é lembrarmo-nos e comunicar com os que estão mais longe, aqueles que talvez não vejamos nesta quadra mas que fazem parte da nossa vida. É por isso, porque essa troca de afetos se mantem, embora por outros métodos, que, em termos de amizades, eu não sou nostálgico dos natais de antigamente. É verdade que o Natal foi também atacado pela onda de consumismo que se apoderou do Mundo, nomeadamente nos países mais ricos. E onde dantes era um pequeno brinquedo ou uma peça de roupa que eram uma bênção natalícia e tinha o deslumbramento duma coisa rara, porque única, hoje são muralhas de pacotes e embrulhos que se desfazem à noite, depois do jantar e que os mais pequenos vão desembrulhando e pondo para o lado, na sofreguidão do próximo presente. As listas de presentes que fazemos são um trabalho prodigioso de imaginação, porque temos que adivinhar se o presenteado já tem o objeto em que pensámos ou se algum outro lho dará igualmente. Comprar presentes é uma tarefa de Cíclope, ir a compras ao Vasco da Gama nos dias que correm é uma aventura quase tão épica como a do próprio Vasco da Gama. Também aí o que nos move é o mesmo de antigamente – a vontade de dar algo nosso a alguém que faz parte da nossa vida e também neste caso se mantem o espírito natalício da partilha e da solidariedade. Também aqui, porque há que distinguir a essência da aparência, não sou, em termos de dádiva, nostálgico do Natal de antigamente. Em resumo : as coisas evoluem e alteram-se, como se vai alterando e evoluindo a sociedade, mas aqueles sentimentos e rituais do Natal, embora sob outra forma, mantêm-se inalterados. Mas…talvez devêssemos pensar que nem todos têm a possibilidade de ter os mesmos Natais que nós. Que há seres como nós que, por caprichos da Natureza ou tragédias da vida, nem sabem o que é o Natal e precisam que para eles seja Natal todo o ano. Que dependem quase exclusivamente daquilo que a Sociedade lhes pode dar ou fazer por eles. E que o que fizermos não é uma qualquer presente mas uma obrigação moral para com eles: nós nascemos e crescemos capazes de gerir as nossas vidas e sermos autossuficientes na sobrevivência. Eles não. Temos inquestionavelmente uma dívida para com eles, porque, para serem justas, a natureza e a vida deviam dar as mesmas oportunidades a todos. Muitos deles vivem em Instituições que a eles se dedicam e que sobrevivem com terríveis dificuldades financeiras para lhes proporcionar condições mínimas de dignidade de vida. No caso da nossa terra, vem-me imediatamente à cabeça a CERCI- Flôr da Vida, que ampara os mais desprotegidos dos desprotegidos, os mais carenciados dos carentes. Por isso deixo aqui um repto para que tenhamos uma atitude diferente neste Natal e nos Natais futuros: e se nós, em vez de oferecermos apenas brinquedos novos, uma camisola que vimos numa qualquer montra e que ficaria tão bem a um amigo, um envelope com cinquenta euros lá dentro, oferecêssemos também dentro dum envelope o recibo duma dádiva à Cerci em nome do presenteado? Eu é o que vou fazer : este ano, os meus filhos e os meus netos receberão de mim o recibo duma dádiva à Cerci em nome de cada um deles – a descontar naquilo que gastaria a comprar-lhes objetos supérfluos. Será também uma forma de não ser nostálgico relativamente aos Natais de antigamente. O espírito de solidariedade que deve estar presente no Natal estaria, neste gesto, bem vivo e patente. Vamos a isso? |
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