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Sangue, suor e lágrimas de quem passou uma vida inteira de trabalho nas pedreiras |
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Três trabalhadores do setor da indústria extrativa passam em revista as suas carreiras
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Sílvia Agostinho
11-04-2019 às 16:04 |
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Nesta segunda parte do nosso trabalho nas pedreiras de Alenquer, damos voz a antigos e atuais trabalhadores das indústrias extrativas que laboram no concelho. O que passaram, a dureza do trabalho, a falta de condições muito ligada ao início da atividade mas que ainda hoje se nota, as doenças profissionais, foram alvo de uma reportagem. Quanto ao nosso convite junto das empresas para um encontro com o nosso jornal não obtivemos resposta.
João Franco, 56 anos, residente em Abrigada, trabalha praticamente desde sempre na pedreira da Calbrita. Tem dedicado uma vida inteira a este trabalho. Já são 28 anos. Aproxima-se a idade da reforma, e as diferenças por comparação à altura em que começou a laborar na empresa são muitas. Havia mais centrais de britagem, mais máquinas, e trabalhadores, no fundo. Diz que tem sido um privilegiado porquanto o seu trabalho tem sido sempre com viaturas e não com picaretas ou marretas como foi o caso de outros colegas. Nesta altura, labora na pedreira da Carapinha, mas antes esteve na da Moita, também da mesma empresa. As condições de trabalho são melhores do que há quase 30 anos quando começou. A nível de poeiras, a situação tem vindo a ser mais controlada. “Antigamente era tudo a céu aberto, agora tenta-se fechar mais, contudo, por vezes, podia-se evitar ainda mais a propagação de poeiras”. “No fundo, há coisas que estão melhores, outras nem tanto”, desabafa. É uma das testemunhas privilegiadas quanto ao facto de as indústrias extrativas concelhias não procederem aos respetivos planos de lavra com a requalificação paisagística imposta por lei – “Isso ninguém faz!”, afirma de forma contundente. “Sei que a Secil/Agrepor andou a plantar umas árvores, mas de resto não vi mais nada”. Dirigente sindical, João Franco, não tem dúvidas – “A lei é boa no papel, mas depois não se faz nada, a fiscalização falha muito, mesmo a Secil que dá um ar de sua graça nessa matéria acaba por não respeitar, tendo em conta a questão dos limites da exploração em relação à estrada”. No capítulo da higiene e segurança no trabalho, em 30 anos as coisas melhoraram, mas o caminho ainda é longo. Os trabalhadores também descuram esta necessidade. No caso da empresa onde trabalha nota que a Calbrita ainda fornece “máscaras de papel” quando a concorrência “dá máscaras de melhor qualidade aos seus trabalhadores”. Inspeções por parte da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) numa atividade com este nível de responsabilidade e perigosidade “pouco ou nada se vê”. “Já pedimos uma reunião ao secretário de Estado do Emprego por causa da atuação da ACT”. Por outro lado, e quando a ACT vem ao terreno “avisa com antecedência”, o que dá tempo para se acabar por mascarar os resultados, no seu ponto de vista. “Fazem o percurso acompanhados pela entidade patronal, e a visita acaba por ser uma espécie de passeio com guia turístico. Queremos que o Estado permita que a visita seja acompanhada por um representante dos trabalhadores”. O mesmo se aplica às inspeções da Direção- Geral de Energia e Geologia, que lá vão dando um ar de sua graça, mas na mesma lógica de passeio turístico, segundo o trabalhador. O Valor Local endereçou um conjunto de questões a este organismo do ministério da Economia, mas não obtivemos resposta. Felizmente, nenhuma pedreira do concelho de Alenquer está sinalizada como oferecendo perigo, de acordo com um levantamento, que se seguiu após a tragédia de Borba. Sobre o fecho da estrada que dá acesso à pedreira da Carapinha, ocorrido no final do ano passado, João Franco opina – “A empresa que fez o disparo e acabou por provocar aquela situação que culminou no corte da estrada ainda vai ficar com a pedra que ficou debaixo da via, ou seja de borla, quando a deveria pagar.” Para um jovem que queira, hoje, vir para este trabalho, as condições não são fáceis. Na década de 70, quando a atividade extrativa começou a ficar no seu auge, trabalhar nas pedreiras era um bom ganha-pão para as famílias da terra, atualmente nem tanto. “Hoje já temos veículos com ar condicionado, e melhores condições, mas já se sabe isso é sobretudo para os empregados mais queridos”, ri-se, até tendo em conta que é delegado sindical. Os salários na concorrência da Secil são por norma maiores, e até conta que um dos patrões daquela empresa paga melhor do que aquilo que prevê a tabela salarial da Associação Nacional da Indústria Extrativa e Transformadora, da qual o mesmo é presidente, ou seja, “faz o que eu digo não faças o que eu faço”. No caso da Calbrita, quem entra hoje na empresa para um cargo menor fica a ganhar 727 euros. Trata-se de um valor semelhante a outros praticados pela concorrência. Quase na reforma, conclui que “os empregados têm de viver com os patrões e vice-versa, porque temos de ser uns para os outros”. “Tem de haver uma relação de meio-termo”. Quanto aos novos patrões que assumiram a empresa em 2016, lembra ainda o fundador da Calbrita e deixa escapar entre sorrisos– “Temos vindo a piorar!”, lembrando a faceta de benemérito do falecido. Quanto a Borba “ajudou a mexer qualquer coisa”. O sindicato do qual faz parte conseguiu algumas conquistas a nível das condições de trabalho, ordenados, mas há muito por fazer. |
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Delfim Simões sofreu muita pressão nos últimos anos de trabalho
Delfim Simões, residente em Abrigada, começou a trabalhar na pedreira da Calbrita quase de bibe se assim podemos dizer. Foi aos 14 anos que iniciou uma vida de trabalho, e em 2014 reformou-se. Os piores acontecimentos da sua vida foram motivados pelo trabalho. Dirigente sindical diz que foi perseguido e entrou num estado de alienação, a dada altura, do qual demorou muito tempo a sair. A juntar a tudo isto, os pulmões pregaram-lhe uma partida. Anos e anos neste trabalho levaram à acumulação de residuais pesados, e antes de largar o trabalho mal conseguia respirar. Hoje está melhor mas as sequelas físicas existem e as psicológicas nem se fala. É também um defensor da premissa de que “muito foi melhorado mas podemos ir mais além”, sobretudo quando se fala em higiene e segurança no trabalho. Mais formação para os trabalhadores é ainda outra das questões a trabalhar, no seu ponto de vista. Quando começou nos finais da década de 60, diz mesmo que “era tudo à mão”; “as máquinas que faziam britas eram puxadas por pás, mais tarde é que veio a eletricidade e as coisas foram melhorando”, por outro lado “os carros que transportavam a pedra não tinham nada a ver com os de hoje”, eram “dumpers descartáveis sem cabines”. Luvas e biqueiras de aço, por exemplo, não existiam, muito menos máscaras ou auscultadores para o ruído. Havia uns “fatos de borracha muito quentes e uns capacetes de alumínio pesados”. Mais parecia que se trabalhava numa mina. Não havia sequer regas para se controlar as poeiras. “Naquela altura, marreava-se a pedra (bater com a marreta) hoje já não se faz isso”, acrescenta. Naquele tempo, as pedreiras empregavam muita gente, e era um trabalho mais bem pago do que outros, mas também aconteciam mais acidentes, e Delfim Simões recorda a morte de um ou outro colega, como “o Silvino que ficou debaixo de uma máquina e com quem tinha falado cinco minutos antes”. Ter sido delegado sindical deu-lhe ainda mais perspetiva sobre a indústria em causa, foi um dos conhecedores da situação periclitante em que se encontravam as pedreiras de Borba. Os avisos já tinham pelo menos 10 anos por parte do sindicato. Delfim Simões não esconde que não houve atuação por mero laxismo. “As entidades iam-se descartando e adiando o caso”. “Com a pedra a ser comida da forma que estava a ser, mais ano, menos ano, já se sabia que aquilo podia vir a acontecer, exceto se a atividade tivesse parado, mas como nunca parou deu no que deu”. No caso de Borba, estavam em causa as pedreiras de mármore, material nobre e sofisticado, em que os empresários “não tiveram escrúpulos e não olharam a meios perante os lucros que aquele tipo de pedra proporciona”. “Foi preciso perderem-se vidas, para que agora se olhe para este setor de outra maneira”. Após se tornar dirigente sindical, recorda que foi “perseguido” e “discriminado” pela empresa onde trabalhou, e ainda durante a anterior administração, “mas nunca virei costas ao meu papel, e aprendi muito com os trabalhadores”. “Trabalhar numa pedreira é duro, violento e mal remunerado, muito se melhorou, mas há empresas que ainda estão aquém do cumprimento da lei, mesmo não deixando de ter os seus lucros, o problema é que só querem para elas, e depois o resto logo se vê”. Por outro lado, “não se valoriza o trabalhador”. “O lucro é que interessa, e a palavra colaborador não é mais do que isso”. Mesmo assim e olhando para trás, “valeu a pena, sobretudo quando lutámos por mais condições, não fomos só nós que ganhámos, mas também a empresa”. Sem nunca ter sido fumador, nos últimos anos antes de ter saído da empresa, confessa que enfrentou tempos muito difíceis, em que “à noite, depois de sair do trabalho, tinha de ir para o hospital”. A brita era transformado num pó como se fosse uma farinha, letal para o ser humano, quando exposto continuadamente a este tipo de trabalho. Como Delfim Simões, 64 anos, muitos outros trabalhadores e antigos trabalhadores enfrentam sequelas deixadas por uma exposição durante toda a vida aos pós das pedreiras. No seu caso, chegou a acordo com a Calbrita, não conseguiu receber tudo a que tinha direito, mas foi a única forma, porque chegou ao ponto de andar todos os dias a caminho do hospital. “Estava desesperadíssimo”. Cansaço e não conseguir respirar eram o prato do dia. Andou quase três anos nesta roda livre. Passado um ano e meio de ter saído, a saúde melhorou, mas as doenças profissionais deixaram sequelas. Foi vítima de uma era, em que as condições de trabalho eram o que eram, hoje “um jovem que vá para as pedreiras tem outras condições, desde veículos com ar condicionado, máscaras, embora nem sempre as mais adequadas, e capacetes”. Dispõem de cabines para alimentadores de britadeira “melhoradas que não apanham tanto pó”. Se as pessoas que são mais novas exigirem os meios de segurança e os usarem “não terão os mesmos problemas que eu e outros colegas, porque quando somos novos não pensamos, mas ao fim de 20 ou 30 anos a saúde vai sempre piorando e os problemas aparecem”.
Nuno Franco e o orgulho de ter contribuído para grandes obras no país Também com um percurso longo na indústria extrativa do concelho de Alenquer, Nuno Franco, residente em Abrigada já reformado, trabalhou na extinta Sociedade de Britas, que depois foi adquirida pela Betecna, Lafarge, e mais recentemente pela Secil. Começou miúdo também. Andou por outras áreas, mas regressou, a dada altura, às pedreiras. Foram 26 anos neste trabalho, e foi a Secil que o despediu quando adquiriu a empresa. Começou logo por cortar no pessoal especialmente no mais velho como Nuno Franco, então com 59 anos, que ficou triste. “Apesar dos anos, sentia que a minha experiência ainda podia ser útil, principalmente numa altura em que já havia melhores condições como ar condicionado nas viaturas e outras coisas que não havia dantes, nem pude disfrutar dessas possibilidades no meu trabalho”. Não lhe ficaram a dever nada, mas a pena foi muita – “Quer queiramos ou não, tínhamos um ritmo, pena que não aproveitaram a experiência dos mais velhos”. Sabe muita coisa sobre o comportamento imprevisível das pedras. De alturas nunca teve medo. “Sentíamos que tínhamos asas, nada disso nos incomodava, quando se anda naquele trabalho não podemos pensar que estamos a 50, 70 ou 100 metros de altura, mais complicado era quando tínhamos de entrar numa montagem para desencravar uma pedra, sempre na iminência de levar com outra pedra em cima ao mais pequeno movimento e com a adrenalina ao rubro”. Nessas alturas, só pensava “se tiver de morrer queira Deus que eu não sofra muito”. “Qualquer deslize ou movimento e estamos feitos”, recorda. Este antigo trabalhador do setor das pedreiras, afirma-se um português satisfeito quando passa por grandes obras como a Ponte Vasco da Gama, a Expo ou a CREL – “Foi das pedreiras daqui que partiu a matéria prima para esses grandes empreendimentos, quando lá passo sinto orgulho”. Nessa altura, “trabalhávamos noite e dia”. Tinha gosto nesse trabalho, apesar de todas as contrariedades e da dureza inerente. “Os meus colegas sentiam-se responsáveis”. No fundo, o país estava a andar para a frente naquele tempo. Um dos momentos que não vai esquecer foi quando um acidente de trabalho o atirou para um coma de seis dias. “Fui ao paiol verificar os explosivos, e quando regresso para dentro da pedreira, coloco mal o pé em cima do patim da camioneta, e a mão agarrada ao espelho. De repente caí, o meu colega disse-me que deitei espuma pela boca, fui levado para o hospital”. O acidente deu-se em 2008, teve dois anos de baixa, só depois regressou ao trabalho. A Secil entrou há cerca de cinco anos. Mágoas ficou com algumas, mas também por causa do sindicato que, numa altura, em que precisou de um advogado não o ajudaram. “Quando tive o acidente, foram outros filhos da mãe,e o advogado do sindicato nem apareceu. Uma vida inteira a dar o meu dinheiro para o sindicato e depois viraram-me as costas. Desiludiram-me. Hoje não confio em ninguém”. Problemas de saúde por causa de uma vida inteira a respirar o pó das pedreiras vão aparecendo – “Já tenho umas mazelazinhas, tenho de usar bomba para conseguir respirar”. Este antigo trabalhador é da opinião de que deveria ser feito um estudo sobre a saúde respiratória e as doenças do pulmão junto de atuais e antigos trabalhadores para se ter uma noção do impacto. Nova administração da Calbrita diz-se preocupada com a requalificação paisagística que nunca arrancou O Valor Local contactou há cerca de um mês algumas das empresas que laboram no concelho nesta área para uma reportagem in loco, mas não obtivemos feed-back. O nosso jornal enviou ainda antes da apresentação da primeira parte desta reportagem, na edição de fevereiro, um conjunto de questões sobre a laboração da Secil, da Cimpor e da Calbrita. Esta última enviou-nos, entretanto, as respostas às questões enviadas. Uma das críticas apontadas a estas indústrias prende-se com a ausência de recuperação paisagística das frentes que dificilmente são fechadas, com o intuito de não se cumprirem os ditos planos de lavra, António Varela, responsável da Calbrita, refere que não se pronuncia sobre o que ficou para trás nesta matéria, “o que foi ou não feito em anos anteriores” até porque esta administração “apenas tomou posse em janeiro de 2016”. Mas salienta que a questão é preocupação constante desta nova administração proceder à requalificação paisagística das pedreiras, e prevê fazê-lo no espaço de dois anos em algumas “zonas disponíveis” A Calbrita viu-se ainda envolvida numa polémica recente relacionada com o possível avanço do aterro, sua propriedade, na Carapinha, sobre um convento paulista do século XIV. O terreno foi adquirido em 2018, e segundo António Varela, o convento já se encontrava degradado e vandalizado. Desmente ainda a ideia de que o aterro esteja a avançar sobre o monumento. “Encontra-se dentro do limite da área licenciada da pedreira”. “A Direção geral do Património já visitou o local e não efetuou qualquer recomendação, uma vez que o aterro não afeta o convento paulista”, refere. A exploração da pedreira do Cabeço de Meca é atribuída a uma empresa do grupo Calbrita. Segundo a Associação para o Estudo e Defesa do Ambiente do concelho de Alenquer, nunca foi feita a requalificação paisagística, sendo que a exploração chegou ao nível freático. De acordo com a Alambi havia uma caução de 11 mil 615 euros que a empresa nunca adiantou. A requalificação paisagística estava orçada em 34 mil 847 euros e também nunca arrancou. O responsável da Calbrita diz que a informação prestada pela associação é falsa, e avança que foi prestada uma caução à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, no valor de 36 mil 536 euros. “Em relação à recuperação paisagística a mesma encontra-se em execução”, embora ambientalistas e outros atores locais disso não tenham tido conhecimento. Quanto a boas práticas seguidas, a empresa refere que segue todas as monitorizações ambientais previstas na lei e respeitamos todas as regras de higiene, saúde e segurança previstas na legislação laboral em vigor, apesar das críticas até pro parte de trabalhadores. Notícias Relacionadas: Pedreiras de Alenquer: Terra sem Lei Empresas obrigadas a reparar caminho que liga às pedreiras de Alenquer |
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